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por Oldfox, em 19.04.17

Daphne du Maurier

 

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A última romântica

 

Daphne du Maurier, considerada justamente como uma das autoras mais populares do século XX, ocupa um espaço particular no universo da Literatura. Chamaram-lhe a “última romântica” porque, num século em que se acabou de vez com a inocência, ela escreveu sobre a aventura e as paixões ilimitadas, com grande elegância, inteligência e destreza. Conhecida e reconhecida por uma multidão de admiradores em todo o mundo foi, no seu tempo, e apesar da fama, uma mulher com grande sentido de privacidade, misteriosa e dada a sentimentos ambíguos. Grande criadora de ambientes de suspense e de teias psicológicas complicadas, não é de estranhar que o grande mestre do cinema Alfred Hitchcock se tenha deixado encantar pelas tramas, tanto do romance “Rebecca”, publicado em 1938 e filmado em 1940 (Orson Welles também fez uma adaptação para a rádio, no mesmo ano da publicação do livro) como pela estranheza do conto “Os Pássaros”, transformando-os em clássicos de terror.

 

Daphne nasceu a 13 de Maio de 1907, em Londres, a segunda de três irmãs, e passou os primeiros anos no ambiente fervilhante e sofisticado do teatro e da literatura. Era neta do célebre Georges Du Maurier, caricaturista da revista Punch e autor de peças de teatro, das quais, “Trilby “(1894), hoje em dia esquecida, teve um sucesso tão retumbante na altura que desencadeou uma guerra entre escritores que tentavam a sua sorte no meio altamente mediático e extremamente mundano do teatro londrino. (Oscar Wilde – que Du Maurier criticava – e Henry James – de quem era grande amigo – foram alguns dos afectados.)

Os pais de Daphne formavam um casal famoso e constavam amiúde das colunas sociais. A mãe, Muriel Beaumont, era uma actriz de grande beleza – nessa altura os actores e actrizes de teatro correspondiam aos de cinema, hoje em dia – e o pai, Sir Gerald du Maurier, tornou-se um ídolo das matinées, tão atraente e sofisticado que deu origem a uma marca de cigarros quando estes eram, ainda, um sinal de elegância.

Gerald tinha uma irmã, Sylvia Llewelyn-Davies, outra beldade que captou a atenção de um amigo da casa, o escritor J.M. Barrie, que se inspirou nos filhos de Sylvia para escrever “Peter Pan”. Outros visitantes assíduos incluíam os escritores Henry James e Edgar Wallace, artistas, dramaturgos e produtores. Gerald era também actor e produtor teatral e, em sua casa, cruzavam-se os maiores nomes das letras e da sociedade inglesa. O círculo de amigos incluía estrelas de teatro e cinema como Sir John Gielgud, Douglas Fairbanks Jr. e Gertrude Lawrence considerada, na altura, a mais importante actriz de music – hall, com fama e proveito estabelecidos, dos dois lados do Atlântico.

Mais tarde, com o aparecimento da biografia da autoria de Margaret Foster ("Daphne du Maurier. The Secret Life”) foi explorada a ideia que Daphne e Gertrude teriam vivido um tórrido romance de amor, um entre outros de carácter homossexual que a escritora manteve ao longo da vida e aos quais chamava “as suas tendências venezianas”. Foi ainda Foster quem escreveu sobre a obsessão de Daphne pelo pai, o que teria motivado a sua posterior dificuldade em relacionar-se com os homens. Mas o seu verdadeiro grande amor, aquele que a levou a escrever, foi por uma casa na Cornualha, a Menabilly, que, em “Rebecca”, se chamou Manderley.

 

A família du Maurier orgulhava-se dos seus pergaminhos: para além da ascendência francesa, uma das suas antepassadas, Mary Anne Clarke, teria sido amante do Duque de York, filho do rei George III e uma das suas filhas casou com um tal Louis-Mathurin Busson du Maurier. Estes relatos empolgantes  forneceram a Daphne, que gostava muito de História, material suficiente para escrever “The Glass Blowers” (1963) sobre a família Busson, “Gerald” (1934) sobre o seu próprio pai e “The House in the Strand” sobre a família dos donos da casa que ocupou posteriormente, Kilmarth, que pertencera a um baronete chamado Roger Kylman, e que datava do século XIV.

 

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A Família. Daphne com o marido, filhas e filho.

 

Daphne cresceu num meio social e cultural privilegiado. Em pequena, era mimada pelo pai que a encorajava, inclusive quando ela decidiu que era um rapaz, cortou o cabelo rente e anunciou que passava a chamar - se “Eric Avon”. As suas excentricidades não impediram que tivesse uma educação cuidada, em bons colégios em Londres, Meudon e Paris, e solidificada por múltiplas viagens. Nas suas memórias “Growing Pains” conta a história – entre muitas outras – de um apaixonado que a perseguiu até à Suécia. Para lhe escapar, ela despiu-se completamente e mergulhou na água gelada de um fiorde, para ser salva pelo mesmo galante enamorado que a tentou aquecer, oferecendo-lhe uma manta de peles. A jovem recusou e, nua, pediu-lhe antes uma adaga para cravar no peito. Este tipo de situações, fruto do seu temperamento apaixonado e dramático foi transposto para a sua escrita, onde abundam  homens aventureiros, piratas, flibusteiros e contrabandistas, perseguidores de jovens perturbadas e em perigo, mulheres belas e valentes.

Nos anos 20 os pais de Daphne adquiriram uma casa de férias na costa, junto a Fowey, e a jovem ganhou o gosto pelo mar e pela paisagem selvagem, longe do bulício de Londres. Aqueles lugares excitavam a sua imaginação e a escrita passou a ser a forma de melhor se expressar. Foi em Fowey que começou a escrever contos. O seu primeiro romance, “The Loving Spirit”, foi publicado em 1931 por um tio que era dono de uma editora. A recepção a esta história não podia ser mais entusiasta e o livro tornou-se tão popular que um jovem oficial, o Major Tommy (“Boy”) Browning, depois de o ler, resolveu que tinha de conhecer a autora. Apareceu em Fowley no seu barco à vela e, durante um ano, cortejou Daphne de longe, teimosamente. Acabaram por se conhecer e casaram em Julho de 1932. Por essa altura já a autora tinha consolidado a sua fama, principalmente graças a “Jamaica Inn”, um romance de aventuras que fora inspirada por um dia que passara numa estalagem do mesmo nome. (Entretanto, Alfred Hitchcock reparara no potencial da escrita de du Maurier e rapidamente transformou esta terrível história de crimes e suspense, em mais um sucesso, em 1936.)

Durante os primeiros dez anos de casada, Daphne fortaleceu a sua paixão pela Cornualha, essa costa da Grã-Bretanha virada para o Atlântico, cheia de brumas, mistério e beleza. Teve um filho e duas filhas e, em 1943, em plena Guerra, a família mudou -se definitivamente para lá. Num dos seus passeios, Daphne e o marido tinham descoberto Menabilly, uma mansão desabitada do século XVII que imediatamente captou a atenção da escritora. Pertencia a uma família aristocrática, os Rasleigh que concordaram em alugá-la por um período de 25 anos. Foi Menabilly – que se tornou uma paixão e uma obsessão para Daphne – a inspiração para a casa “assombrada” de “Rebecca”, talvez um dos livros mais célebres de sempre com a sua frase inicial: “Na noite passada sonhei que tinha voltado a Manderley”…

“Rebecca” é considerado como o digno seguidor do romance gótico das irmãs Brontë, tendo sido influenciado grandemente por “Jane Eyre” e contendo todos os ingredientes para uma história palpitante: uma casa misteriosa e assombrada, violência, crime, um vilão, muita paixão física, um fogo devastador, uma paisagem assustadora e encantatória e a versão século XX do tema de “a louca no sótão”. A dívida para com as Brontë, totalmente assumida e reconhecida pela autora, levou-a a escrever uma biografia do amaldiçoado elemento masculino da família, “Branwell Brontë“.

 

Em 1965, du Maurier entrou numa fase mais dura da sua vida. O marido morreu e, quatro anos depois, o prazo do arrendamento de Menabilly expirou, forçando-a a deixar a sua casa bem amada. Foi viver para perto, para Kilmarth, onde passou o resto dos seus dias. Nesse mesmo ano, como que para compensar a sua perda, foi feita Dama do Império Britânico.

A popularidade dos seus romances e contos – que ainda hoje se lêem com interesse e emoção – foi aumentando ao longo dos anos, um fenómeno que se deve ao facto de a autora ter sabido trabalhar diversos géneros de ficção: o romance propriamente dito com influências do estilo gótico, o thriller, o género “terror”, o drama psicológico, a história de aventuras, etc. com enorme mestria.

Daphne foi uma leitora ávida desde muito pequena e é possível discernir, na sua obra, a influência de autores como Walter Scott, W.M. Thackeray, as Brontë, Oscar Wilde, R.L. Stevenson, Katherine Mansfield, Guy de Maupassant e Somerset Maugham. Era especialmente dotada para criar atmosferas e para mostrar a evolução de paixões extremadas mas muito humanas.

Foi ela, com a ajuda de Hitchcock, que instaurou a sensação do medo inexplicável. Muitos dos mistérios no centro dos seus romances ficam por esclarecer. Ainda hoje, quem lê “A Prima Raquel” debate-se com a personalidade da heroína, “Os Pássaros” continuam a representar um medo antigo, uma ameaça não explicável da toda-poderosa Natureza e “Don’t Look Now”, um romance sobre a morte de uma criança que continua a assombrar os pais em Veneza, levanta a questão da dor insustentável de quem perde um filho.

 

Em 1989, Daphne morreu na sua bem amada Cornualha, onde gostava de estar só com os seus cães, rodeada de memórias dos tempos de felicidade, quando Menabily /Manderley ainda era a sua casa e as vagas e as brumas acompanhavam os seus passeios solitários. De acordo com o seu desejo, as suas cinzas foram espalhadas ao longo da costa.

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Gertrude Lawrence com Yull Brynner

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publicado às 17:32


por Oldfox, em 23.02.17

Flannery O'Connor "O Céu é dos Violentos"

A Cólera de Deus

 

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Em 1960, quatro anos antes de morrer vítima de lupus, Flannery O'Connor publicou "O Céu é dos Violentos", o seu segundo e último romance, uma história apoteoticamente sombria sobre a morte e a redenção da alma. O tom arrebatador com que esta sulista se lançou na escrita serviu o propósito, bem delineado desde a infância, de expor e de articular, em múltiplos aspectos, duas das questões essenciais que preencheram a sua existência: os abismos da crença religiosa e a relação conturbada com o espaço geográfico em que nasceu e viveu. No vórtice de "O Céu é dos Violentos", a escritora fez convergir toda a sua filosofia, alimentada e desenvolvida, sobretudo, pelo estudo de S. Tomás de Aquino e do teólogo Pierre Teilhard de Chardin, já visível no seu juvenil e profundamente espiritual "Diário de Preces" (ed. Relógio D' Água), escrito entre 1946 e 1947, "descoberto" e publicado em 2013. De Teilhard de Chardin, Flannery retirou a crença de que tudo converge para Deus, algures num ponto ofuscante onde ela, a autora, coloca as suas personagens, dilaceradas entre a crença feroz e a dúvida perene.

Em "O Céu é dos Violentos", esse combate centra-se num rapaz de catorze anos, Francis Marion Tarwater, a quem o seu tio-avô, um homem "possuído" – e auto-proclamado profeta – confia duas missões: a de lhe dar um enterro cristão e a de baptizar um outro sobrinho com problemas mentais, que vive na cidade com o pai. O velho Tarwater, que raptou Francis em criança para lhe transmitir a sua visão fanática da religião, cria-o na floresta no sentido de fazer dele o seu discípulo e morre, efectivamente, no início do livro. O rapaz procura satisfazer o seu compromisso, começando a cavar uma sepultura no solo duro e resistente, mas interrompe a tarefa árdua e inglória ao ouvir uma "voz" que lhe diz para esquecer o velho e seguir com a sua vida. Incapaz de tomar uma decisão, embebeda-se, pega fogo à casa com o cadáver lá dentro e apanha uma boleia de um caixeiro-viajante que lhe garante que "…não existe o diabo nem nada que o valha… não tens de escolher entre Jesus e o diabo. A escolha é entre Jesus e ti mesmo." (pág. 38). Ao chegar à cidade, Francis procura o tio, o professor Rayber, pai de Bishop, um miúdo com síndrome de Down, que o acolhe e tenta fazer dele um "ser humano útil", desmistificando a falsa doutrina que impregnou a cabeça do rapaz. Mas Francis mantém uma atitude de teimosia e alheamento, tendo por companhia a mesma "voz" (o seu amigo, isto é, o diabo) que o alicia na descrença e na resistência. A acção decorre ao longo de uma semana e toda a narrativa é construída em torno de "flashbacks" que dão conta de uma família disfuncional, cujos membros, ao longo dos anos, se debateram com conflitos alimentados pela ignorância, fraqueza moral e fundamentalismo messiânico. Os vértices do triângulo formado por Francis Tarwater, Rayber e Bishop simbolizam três forças que se digladiam impiedosamente e acabam por se destruir entre si, à medida que as acções demenciais se sucedem à luz de visões bíblicas de baptismos e purificações que carregam consigo a destruição e a morte.  

"O Céu é dos Violentos" tem o peso de uma maldição lançada aos quatro ventos por esta autora singular que lia e relia em criança os contos de Edgar Allan Poe e manteve uma discussão consigo própria relacionada com os enigmas da fé sem nunca perder de vista uma ironia selvagem que raiou o grotesco, muito próprio do "gótico sulista", uma designação que serviu para acantonar escritores tão diferentes quanto Faulkner, Carson McCullers, Tennessee Williams, Harper Lee, Truman Capote, Cormac McCarthy e a relutante Eudora Welty que se insurgiu contra essa categorização. Na realidade, todos eles conheceram e se deixaram seduzir perversamente pela ideia, que transpuseram para a escrita, de um lugar luminosamente sombrio, entre chamas purificadoras, o apaziguamento da água baptismal, a viagem iniciática e o negrume de um céu onde os pobres, os deserdados, os impotentes, os marginais e os mutilados física e psicologicamente se movimentam numa ânsia redentora que os arrasta por um longo caminho de martírio. Este quase sadismo a que O' Connor expõe homens e mulheres destinados a um propósito envolto em trevas foi o que desencadeou a reacção da sua antiga professora de escrita criativa no Georgia State College for Women, (cujas aulas frequentou, em 1942) que, dez anos mais tarde, ao ler o primeiro romance da sua aluna, ("Sangue Sábio"), o atirou pelo ar e exclamou: " se ela (a autora) tivesse morto o personagem logo no início, em vez de o fazer no fim, teria poupado uma grande maçada a muita gente." Este desabafo reflecte o desconforto de leitores que resistem ao ímpeto devastadoramente cómico de O' Connor, cuja força, feita do apuramento incandescente da sua escrita aliado a um imaginário assombroso, se condensa essencialmente nas narrativas mais curtas mas que "explode" literalmente neste romance.

O' Connor foi uma ardente devota mas a questão do seu catolicismo e a forma como este se revela nos seus escritos, tem sido objecto de estudos e especulações. O próprio título deste livro remete para a ambiguidade da passagem de Mateus, 11:12, "Desde os dias de João Baptista até agora, o reino dos céus tem sido objecto de violência e os violentos apoderam-se dele à força", evocativo da luta perene contra o Mal – que tenta subjugar o divino para o diminuir e distorcer – luta essa que não exclui a violência e o confronto brutal, reminiscente do tumulto que encontramos em "Paraíso Perdido", de John Milton.

O' Connor não se coíbe de desmascarar a ignorância que leva à intolerância e que, por sua vez, se desenvolve num fanatismo grotesco, frequentemente intrínseco aos seus personagens, mesmo quando estes estão imbuídos de uma qualquer visão redentora. No entanto, essa espécie de epifania nunca é pacífica, antes se reveste de um carácter demolidor que é próprio da revelação do mistério da morte, tema central deste romance e tratado, pela autora, com uma espécie de desespero irónico, enquanto transpõe, para a ficção, tudo aquilo que a atormentou: os preconceitos e a tibieza moral, o bem e o mal, as tensões entre o ser humano e a natureza, entre a razão e o fanatismo, entre o paraíso e o inferno.

© Helena Vasconcelos

Publicado em Ípsilon, suplemento cultural do Jornal Público, Lisboa

 

O Céu é dos Violentos, Flannery O'Connor, tradução Luís Coimbra, ed. Relógio D'Água, Lisboa

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publicado às 13:14


por Oldfox, em 01.12.16

Conan Doyle e Sherlock Holmes

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Elementar , meu caro Watson!

 

Em Londres, num dia aprazível de 1889, J.M. Stoddart, o editor da revista Lippincott’s, convidou para almoçar dois escritores que ele tinha em grande conta, Oscar Wilde e Arthur Conan Doyle. Na altura, proliferavam as publicações como a sua e a competição era feroz. Por isso, Stoddart tencionava convencer os dois homens sentados à sua frente a escreverem algo de diferente mas que contivesse os ingredientes que faziam furor na época: mistérios, loucura, crimes, ambientes assustadores, suspense, traições, segredos inconfessáveis e acções depravadas a coberto de uma respeitabilidade de fachada. Wilde não hesitou e lançou-se na produção do famoso “Retrato de Dorian Gray”. Conan Doyle resolveu repescar a personagem de Sherlock Holmes que criara, com alguma displicência, em 1887 para a novela “A Study in Scarlet”  e escreveu uma nova aventura “The Sign of Four” ( 1890) - seguido de “As Aventuras de Sherlock Holmes” - onde surgia novamente a personagem de um homem excêntrico, dado a crises de depressão e melancolia, aliviadas pelo consumo de ópio e cocaína, um maníaco-depressivo de inteligência invulgar, empenhado em combater o mal, obcecado pela solução de crimes e pela exposição de vícios de uma sociedade em tumulto ( a vitoriana) que procurava desesperadamente o equilíbrio e a respeitabilidade. Foi assim que Doyle estabeleceu uma longa e por vezes conflituosa relação com a sua mais do que famosa personagem, criando um dos fenómenos mais duradouros, complexos e fascinantes da história da Literatura.

 Sherlock Holmes

 Quem é, realmente, Sherlock Holmes, o dono da “ mente com o raciocínio mais perfeito que o mundo jamais conheceu “? Embora exerça um eterno fascínio, não seria propriamente a companhia ideal para uma mulher. Misantropo, sexista, embora atraente para o sexo oposto e sempre pronto para ir em socorro de alguma donzela ou mulher interessante em perigo, prefere nitidamente a companhia masculina - principalmente a do seu fiel e discreto companheiro Dr Watson - naquela fronteira por vezes ténue entre o espaço da virilidade mais misógina (dos clubes só para homens, dos lugares onde só entram homens com o seu famoso espírito de corpo) e a homossexualidade reprimida. A verdade é que Sherlock Holmes se tornou uma figura que adquiriu vida própria, independentemente do seu criador. Deu origem a um adjectivo, a um método de investigação, a um estilo de vida. Ainda hoje existem pessoas que acreditam na sua existência real e há quem ainda lhe escreva para a famosa morada de Baker Street.

Se, no princípio da existência do personagem, Conan Doyle mostrou a grande influência da figura de "dandy" excêntrico de Oscar Wilde, ao longo das centenas de “aventuras” do mais famoso detective do mundo, o seu criador  abandonou gradualmente as características iniciais, como o uso de drogas, os hábitos noctívagos, o desdém por convenções, e enveredou por caminhos bem mais conservadores.

Embora independente em relação às forças policiais - que na sua época ganharam cada vez mais importância em cidades que cresciam a ritmo acelerado, com índices cada vez mais alarmantes de criminalidade - Sherlock Holmes  é, na realidade, um agente esforçado e dedicado na manutenção da ordem social num universo caótico e pleno de ciladas. Os seus poderes de dedução, de racionalidade, de calma e ponderação contribuem para a manutenção de uma ordem própria e de uma estrutura hierárquica “civilizada”, na qual o crime, nomeadamente o assassínio é considerado uma aberração. A paixão de Holmes pela metodologia e pela classificação detalhada de tudo, a sua forma de sistemática inventariação do que está relacionado com cada crime - recorde-se, como exemplo,  as 140 variedades de cinzas de várias marcas de tabaco de cigarro, cachimbo ou charuto que ele pacientemente cataloga - faz dele um precursor dos métodos de investigação ligados à Ciência como estes surgem nas contemporâneas séries televisivas, como C.S. I. (Crime Scene Investigation)

 

Tal como o próprio Doyle, Sherlock Holmes tem um fraquinho pela realeza. Embora a rainha Vitória seja referida apenas uma vez - em “A Aventura dos Planos de Bruce-Partington”, na qual recupera documentos secretos da Marinha e regressa de uma visita a “uma certa senhora de grande majestade ” com um novo alfinete de gravata ostensivamente cravejado por uma enorme esmeralda - a soberana  está sempre presente, naquilo que representa. Não nos podemos esquecer que Holmes é o espelho de uma sociedade em ascensão, industrializada, orgulhosa dos seus feitos, burguesa e imperialista que se revê na rainha. Tal como James Bond, Holmes, com toda a sua liberdade e (alguma) soberba, está constantemente ao serviço de Sua Majestade e do seu País.

O mais interessante em relação a esta personagem puramente literária é que o seu criador não lhe tinha qualquer afecto. Sabemos que eram as aventuras de Holmes que davam fama e dinheiro ao seu autor. Este, que não partilhava a admiração dos seus leitores pela sua “criatura “, como se sabe, tentou acabar com ela, em “The Final Problem” (1893), colocando o terrível Moriarty a cair de um penhasco, aparentemente engalfinhado num abraço mortal com Holmes. Mas os protestos foram tantos - milhares de leitores cancelaram as suas assinaturas da revista onde Doyle publicava as suas peças - que, apesar de “estar tão enjoado de Sherlock quanto de paté “, Doyle viu-se obrigado a dar uma nova vida ao seu herói, um pouco como acontece hoje em dia nas séries televisivas de grande impacto mediático. Na realidade, Holmes foi acompanhando a vida do seu criador, mudando de personalidade e de hábitos, à medida dos caprichos e das incertezas de Doyle e , também, da sua própria alteração de comportamento através da vida.

 

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***

É um dado adquirido que Doyle se inspirou fortemente na figura do detective Dupin, inventado pelo precursor do romance policial que foi Edgar Allan Poe Mas  Sherlock Holmes e todas as histórias em que ele participa foram, sem sombra de dúvida, uma invenção totalmente diferente , com uma técnica que, até hoje, não foi igualada. Uma típica aventura começa com Holmes e Watson na sua casa no nº 22B de Baker Street.  Os dois amigos partilham o apartamento e têm ambos um passado vago, mais ou menos trágico, um casamento falhado no caso de Watson, o vício da cocaína e fortes depressões em Holmes, aventuras em conjunto e, finalmente, a cómoda existência de dois homens de espírito, rodeados de livros e bem tratados pela diligente e discreta senhora Hudson.

Sherlock, para além de químico, é versado em quase tudo, conseguindo descortinar um rosto sob o mais complexo disfarce, descobrindo pistas na forma das orelhas, das tatuagens, dos passos ou de qualquer outro traço de uma pessoa, através da criptografia, da datação de documentos e de uma infinidade de outras referências.

Convém lembrar, ainda, que Sherlock  Holmes foi a primeira figura de ficção a ser admitida como membro da Royal Society of Chemistry. Não escapou, tão pouco, a um título honorífico por ter sido “o primeiro detective a usar substâncias químicas como um meio elementar para a descoberta de crimes”.

Doyle produziu 56  histórias e 4 romances cheias de violência e terríveis incidentes com Holmes e Watson. Mas, apesar do detective nem sempre conseguir prevenir o crime ou punir o criminoso, é capaz de nos dar uma explicação completa e cabal dos acontecimentos. Watson, o prosaico companheiro de Holmes afirma várias vezes que tudo se deve ao intelecto infalível do amigo que nunca se deixa arrastar por emoções. No entanto, estas aventuras estão saturadas de sentimento, uma vez que o grande investigador, tal como o seu criador, foi um homem apaixonadamente empenhado em perceber e vencer o Mal, por todas as formas possíveis. 

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publicado às 15:52


por Oldfox, em 30.11.16

Helen Macdonald - "A, de Açor"

Mulher em ruínas

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O pesar que sentimos quando perdemos alguém que amamos é algo comum a quase todos os seres vivos mas cada um de nós experimenta o luto à sua maneira. Escrever é uma das formas de encarar a dor, como fez Simone de Beauvoir em "Une mort très douce" – sobre a doença e morte da mãe – e, mais recentemente, Joan Didion com "O Ano do Pensamento Mágico", relato pungente dos seus dias depois do desaparecimento súbito do marido, John Gregory Dunne. Estes dois poderosos exemplos, entre muitos outros, quando comparados entre si, não retiram a força e a singularidade à obra da escritora, poeta e historiadora inglesa Helen Macdonald que, em "A de Açor" ("H is for Hawk") arrasta quem a lê para o universo bizarro, quase se poderia dizer "gótico", no qual mergulhou depois da morte do pai, o conhecido fotógrafo Alisdair Macdonald, um homem que lhe proporcionou uma perspectiva única sobre o mundo. Helen é uma "mulher em (e nas) ruínas" de um passado feliz e repleto de memórias: tinha cinco anos quando o pai a levou a Stonehenge e conservou viva a sensação de tocar as pedras milenares; depois, foram as caminhadas pelos campos, nessa paisagem propícia a lendas, em manhãs geladas e enevoadas. Embrenhavam-se nas florestas para avistarem pássaros, aves de rapina e aviões – o pai fotografava enquanto ela se escondia nos cerros e valados, para observar melhor – e ela experimentou a sensação exultante da pertença e da cumplicidade, enquanto aprendia a arte da falcoaria, esse passatempo aristocrático e tremendamente exigente cujas origens se perdem na noite dos tempos.

A morte do pai mergulhou Helen num universo paralelo de "estranhos episódios em que o mundo se tornava irreconhecível " (pág. 147). Adquirir um açor – uma fêmea bebé a que dá o nome de Mabel – levá-lo para casa e treiná-lo parece-lhe o único passo que, no seu estado, faz algum sentido. As aves de presa, embora mantenham uma proximidade ancestral com os seres humanos nunca foram domesticadas. Estes seres alados de uma beleza indizível são difíceis de manter e de criar e obrigam a uma intimidade perigosa e inquietante, um estado de alerta permanente, uma espécie de situação-limite que pode levar os seus possíveis "donos" à loucura, como parece ter acontecido com T.H. White, autor de livros baseados nas lendas arturianas e de "The Goshawk" – relato minucioso do adestramento da sua ave – cuja história a autora acompanha, numa mistura de fascínio e repugnância. A verdadeira tortura a que White submeteu a sua ave paira como uma nuvem agoirenta ao longo de todo o ansioso treinamento de Mabel, e reflecte os estados de espírito contraditórios de Helen que vai consultando obras e contando histórias, as dos falcoeiros da antiga Pérsia e da Mongólia, a do adestramento pelos nobres na Idade Média, inspirado pela prática dos árabes, e a do apogeu desta arte no século XVI. Trata-se de um contínuo exercício de desejo - domar um predador feroz - que a faz sentir-se parte de uma corrente no tempo, como faz notar nesta frase: "Elas (as aves) são em certo sentido imortais. As que são largadas hoje são idênticas às de há cinco mil anos". (pág. 138). Esse desejo de perpetuar a memória, essa "imortalidade", passa por uma misantropia extrema, por uma solidão mitigada apenas pelo amor - e ódio - à ave bizarra, fiel e infiel, amiga e inimiga, familiar e estranha que a acompanha ao longo desse ano.

A lenta aprendizagem de Mabel - comer, não comer, engordar emagrecer, soltar, prender, castigar, recompensar - corresponde à de Helen, numa penosa, receosa e por vezes delirante passagem da escuridão para a luz. Tal como o açor começa por ser enclausurado em casa, velado pelo espesso caparão, também a autora se isola e retrai num mundo de silêncio e obscuridade. A pouco e pouco, tentativamente, com infinitos cuidados, leva a ave – e ela própria – a entrar em contacto com o mundo, "lá fora". Em terrenos urbanos e rurais, Helen tem as mesmas reacções que o seu açor: perplexidade, receio, deslumbramento, apreensão, desnorteamento, exaltação. Através da sua vigília com Mabel, é capaz de deslizar para um tempo antigo, o que lhes é comum, o da Velha Inglaterra de gigantes enterrados e de animais selvagens, de campos e florestas que escaparam ao movimento destruidor da industrialização.

 "A de Açor" é um livro de memórias – excessivo, incisivo como uma lâmina – um sofisticado guia de auto-ajuda, um manual de treinamento de aves de rapina, um exercício brutal de conhecimento, uma confissão despudorada do medo da morte e da vida. É, também, uma obra que cabe perfeitamente no chamado "nature-writing ", à maneira de John James Audubon, de Ralph Waldo Emerson ou de Rachel Carson, colocando, de uma forma pertinente, a eterna questão: até onde podem ir os laços entre os seres humanos e os animais, como lidar e compreender o fascínio mútuo entre o selvagem e o doméstico, entre a brutalidade da sobrevivência e o conforto da domesticidade.

 

"A de Açor", Helen Macdonald, tradução de Ana Falcão Bastos, edição Lua de Papel, 5*

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publicado às 12:57


por Oldfox, em 22.11.16

Aldous Huxley e "As Portas da Percepção"

 

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A Plenitude e o Infinito 

A 22 de Novembro de 1963, a notícia do assassinato do presidente John F. Kennedy tomou a imprensa de assalto, açambarcando as atenções do mundo inteiro. Por essa razão, a morte de Aldous Huxley, ocorrida no mesmo dia, passou quase despercebida. Huxley, nascido em Inglaterra em 1894, vivia na Califórnia, para onde se mudara em 1937, depois de estadas em França e Itália, onde escreveu parte da sua obra de ficção. Nessa manhã deslizou para a inconsciência depois da mulher, Laura, lhe ter injectado, a seu pedido, 100 microgramas de LSD, pondo fim a um longo sofrimento, causado por um cancro na laringe. O autor do clássico "Admirável Mundo Novo" (1932) conhecia bem os efeitos das drogas que consumia regularmente, desde os anos 30. Os seus biógrafos referem um jantar em Berlim, em Outubro de 1930, em que Huxley conheceu o ocultista Aleister Crowley – sim, o mesmo que impressionou Fernando Pessoa – o qual, supostamente, o iniciou no consumo de peiote, utilizado em certas culturas para celebrações religiosas. Mas foi em Maio de 1953 que o psiquiatra Hunphrey Osmond lhe aconselhou a mescalina – os estudos desta substância foram levadas a cabo, principalmente, pelo farmacologista Ludwig Lewin e pelo psicanalista Havelock Ellis – e, mais tarde, o LSD. 

A tomada da primeira dose deste ácido, a 24 Dezembro de 1955, foi deliberadamente experimental e cuidadosamente documentada, gravada em áudio e filmada, dando origem aos textos onde Huxley dá conta dos resultados da sua investigação cuja finalidade era a abertura de novas e inimagináveis vias do conhecimento.

Esta particular edição de"As Portas da Percepção" contém, assim, para além das observações de Huxley relativas à sua experiência mais íntima, o ensaio complementar intitulado "O Céu e o Inferno" e oito apêndices onde o escritor refere, entre outros temas, a importância da prática de exercícios respiratórios de ioga, do canto e da meditação, a variação de estímulos para a mente, o poder político do fausto como forma de "deslumbrar" as massas, a interferência da tecnologia moderna como forma de banalização da vida quotidiana, a luz na pintura de Georges de La Tour, a função encantatória das obras de Van Gogh, Vuillard, Delacroix e Géricault – entre outros – a visão dos esquizofrénicos e a ironia de Thomas Carlyle quando refere a especificidade robótica dos seres humanos. Huxley explora, ainda, o vasto território que se esconde nos recônditos da nossa mente e do qual nos alheamos a todo o instante e tece considerações em torno da solidão de que todos padecemos, uma vez que "… a mente é um lugar de características únicas".

Ao ingerir LSD, Huxley esperava ter visões – semelhantes às dos místicos – mas o que aconteceu foi bem diferente. A sua percepção do mundo agudizou-se enquanto o seu "eu" transitava para o que ele chama de "os antípodas da mente". Comparando a sua experiência à dos artistas no momento da criação, verificou com espanto o esplendor dos objectos – as pernas de uma cadeira, o drapejar do tecido das suas calças, as cores flamejantes das flores, os livros nas estantes "cravejados de jóias" – o desinteresse pela interacção com os outros seres humanos e uma libertação exaltante.

Huxley foi um escritor eficiente, um homem corajoso e nada convencional, um dos mais brilhantes intelectuais do seu tempo, um humanista veemente e um pacifista convicto – escreveu uma Enciclopédia do Pacifismo e um ensaio sobre Pacifismo e Filosofia. Oriundo de uma família de notáveis cientistas e pensadores, frequentou assiduamente Garsington Manor, a célebre casa de Lady Ottoline Morrell, onde se juntavam os membros do Bloomsbury Group que Huxley não se coibiu de ridicularizar no seu romance "Crome Yellow". (1921). Acompanhou de perto e analisou a evolução dos países e das sociedades que emergiram da IIª Grande Guerra e a forma como se debatiam com grandes dificuldades. A ameaça nuclear e a Guerra Fria alimentavam todas as paranóias e o rescaldo da acção de tiranos como Hitler e Estaline não podia ser mais devastador. As experiências com alucinogéneos, as visões de outros mundos e as antevisões apocalípticas tomaram conta da imaginação de uma geração de autores. H.G. Wells (1866-1946), George Orwell (1903-1950), Wiiliam Golding (1911-1993) Ray Bradbury (1920-2011) tinham presenciado (e nalguns casos vivido) o caos e a descida aos infernos. Perante a descrença na raça humana, apressaram-se a relatar, nas suas obras, o tenebroso estilhaçar de utopias morais, sociais e políticas e a revelar a paisagem desolada de um mundo vazio de sentimentos e triturado por máquinas, cuja salvação estaria num universo alternativo, ( noutro "eu" ou noutra galáxia) ou numa ciência dirigida para o ser humano, ciência essa que abriria as "portas da percepção", um termo roubado ao poeta William Blake e contido nas páginas dessa obra-prima que é "O Casamento do Céu e do Inferno" (1790). 

Nos últimos anos da sua vida Huxley dedicou-se à parapsicologia e ao misticismo filosófico, participando activamente nos movimentos da contra-cultura nos Estados Unidos, que incluíam a paixão pela banda desenhada, pela ficção científica e pelo consumo experimental de drogas que acompanhavam (e complementavam) os avanços tecnológicos, a corrida espacial russa e americana e outras experiências no campo médico, cada vez mais audazes. O homem que disse que a felicidade é como a cocaína, "algo que se consome como um produto auxiliar enquanto se faz outra coisa", nunca parou de analisar, de procurar, de dar-nos conta das suas visões e iluminações.

 

As Portas da Percepção, Aldous Huxley. Tradução Paulo de Faria. Prefácio de J.G. Ballard, ed. Antígona, 4 *

 

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publicado às 17:44


por Oldfox, em 01.09.16

Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar? de António Lobo Antunes

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“ Que tolice morrer ”

 

Uma terra quente de toiros e mantilhas, pó e moscas, perdizes e abelhas, com cavalos entre roseiras e azinheiras, um espaço aberto e solar, propício a desmandos e paixões, mas no qual se encravam casas sombrias de longos corredores, portas fechadas e salas a abarrotar de móveis e objectos que se impõem na escuridão, lugares onde se encerram pessoas, as quais, por sua vez, vivem enclausuradas em si próprias, vítimas voluntárias ou involuntárias da velhice, das febres, da demência, da doença, da mentira, de vícios, de traições e de segredos. Nesta cosmogonia caótica, as mulheres, os filhos(as), a criadagem, os animais, todos os mundos – o animal, o vegetal e o mineral – pertencem ao pai e senhor, um facto perfeitamente entendido pelos empregados que “não se enganavam nos garraios, recitavam de cor as famílias, as descendências, os laços… (pág.16). Aqui, neste “Que Cavalos são Aqueles que Fazem Sombra no Mar ?”, como no resto da obra de Lobo Antunes, cada um ocupa o seu lugar e tem direito a um quinhão do território geográfico, moral e afectivo onde se desenrolam as comédias e os dramas que o autor redesenha indefinidamente numa espiral vertiginosa cada vez mais intricada. Mas desengane-se o leitor que procura apenas “mais um Lobo Antunes”, uma vez que este romance, passado entre Lisboa e o Ribatejo, embora retome as histórias familiares e os lugares habituais do escritor, tem, contudo, a particularidade de se centrar num único tema, que é a Morte, criteriosa, insistente e cruel que se  atarda na sua aproximação, nos seus sinais, na sua chegada e nas suas devastadoras consequências, e domina imperiosamente as personagens que se debatem, em vão, contra as longas doenças, a penosa velhice, a catastrófica perda de faculdades e o esvair das forças. Não é por acaso que a narrativa é marcada por capítulos que remetem para os momentos da tourada – “antes da corrida”, “os tércios de capote, de varas e de bandarilhas”, “a faena”, “a sorte suprema” e “depois da corrida” – com a sua estocada final, violenta e, dizem, misericordiosa. O terror do toiro antes da lide, esse medo animal e antiquíssimo, surge como leitmotiv, tal como os estados crepusculares que antecedem o fim – da vida, do dia, do amor -  enfatizados por imagens recorrentes como “a tristeza da casa às três da tarde”, “a sombra que os cavalos fazem no mar”, a escuridão dos arbustos no Parque Eduardo VII, o porco prestes a ser rasgado de cima abaixo, o cão a ser atropelado e um rol de cenas em que a violência, a humilhação e o exercício do poder sobre os mais fracos (dos homens sobre as mulheres, das mulheres sobre os homens, das mulheres sobre as mulheres, dos homens sobre os homens, das mães e pais sobre os filhos, dos filhos sobre os pais e irmãos, dos seres humanos sobre os animais) completam ciclos de força, fecundidade e morte, simbolizados pelo sentido ritual da tourada. É este o universo de uma família, feita de pedaços desconexos, que se entrega ao amor e ao ódio em igual proporção: o pai, um marialva amante de mulheres, jogo e corridas que “desarruma o passado”; a mãe, terrível Héstia, fria, sem amor, sem medo e sem remorso; os filhos, Beatriz, abandonada por dois maridos, que toma conta da mãe, Francisco, o mal amado e desprezado, de índole gananciosa e violenta que se sente imbuído de um espírito justiceiro em relação aos irmãos os quais, segundo ele, delapidaram os bens paternos, Ana que gasta o dinheiro em drogas e João que prefere despendê-lo em rapazinhos. E há Marcília, a figura da eterna criada, sem irmãos nem (aparentemente) família que priva estreitamente com todos e é dona dos segredos, como uma pitonisa tão cruel quanto piedosa, tão humilde quanto altiva, tão serva quanto senhora. Aqui, como na vida, o mundo é feito de desordem e de abalos, e todas estas vozes, que falam incessantemente com uma intensidade maníaca, parecem acossadas por uma tal urgência de contar que é difícil não as “colar” ao próprio autor. Tal como no conto tradicional em que uma menina calça os proibidos sapatos vermelhos e é impelida a dançar até à morte, também Lobo Antunes parece sofrer dessa compulsão, desse desejo extenuante – no seu caso, o objecto mágico é a caneta – que o obriga a escrever palavras atrás de palavras, qual oráculo em tempo de catástrofe.

Funcionando como um todo auto-significante, este romance pode ser abordado da mesma forma como se “lê” um tríptico de Bosch ou uma cena de Brueghel, uma vez que Lobo Antunes constrói uma teia intrincada e cerrada feita de pensamentos, palavras e olhares (perspectivas) de um grupo de pessoas situadas num espaço que se alarga e contrai, num movimento entre o passado e o presente, entre o imaginado e o real. A construção da narrativa deve muito a Virgínia Woolf em “As Ondas”, com as diversas vozes solitárias e desesperadas a funcionarem em polifonia, à medida que revelam factos e exploram os conceitos da individualidade, do “eu” e da comunidade, formando, no entanto, a gestalt de uma consciência colectiva escondida e silenciosa.

É ainda em Woolf, e em especial no conto “Uma Casa Assombrada”[1], que é possível detectar os antepassados destas personagens torturadas e fantasmagóricas, que passam de quarto em quarto empurradas pelo vento, as mãos vazias, perante espelhos que não lhes devolvem qualquer imagem. Lobo Antunes vai ainda buscar a Chekhov a obsessão pelos detalhes e pela descrição de objectos – os lustres, os boiões de compota, os números da roleta, o verniz das unhas, etc., etc., – bem como a tendência para alternar acontecimentos triviais com grandes temas -  em mudanças bruscas de ritmo e de humor, certamente com o intuito de criar a sua própria e muito particular “comédia humana”.  

A convivência de Lobo Antunes com a morte confere-lhe uma autoridade hierática que ele exerce construindo um “panteão” feito de palavras impregnadas por uma espécie de sopro divino e com um tom profético a que não deve ser alheia uma leitura atenta dos livros do Antigo Testamento, em especial do Eclesiastes. O facto da edição ser ne varietur, por ordem expressa do escritor, confere-lhe exactamente esse carácter de “texto sagrado”, não passível de ser tocado ou alterado.

Seria uma irónica (in)justiça poética que o ruído criado em torno da personalidade de Lobo Antunes – para o qual o autor contribui com bastante afã – abafe o verdadeiro sentido deste livro e distraia o leitor do magnífico ritmo ardente das palavras e da tragédia que estas convocam. É verdade que Lobo Antunes parece estar preso no seu labirinto sem ver a utilidade do fio de Ariane, embrenhando-se cada vez mais numa busca que desdenha a hipótese de uma saída. Aqui, o desabafo final, Finis Laus Deo, parece querer traduzir um grande alívio, o descarregar de um pesado fardo. Resta saber para onde se dirigirá Lobo Antunes “quando tudo arde” depois de destruir todas as pontes atrás de si.

 

Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra no Mar? António Lobo Antunes, Ed. Dom Quixote.

 

[1] “A Haunted House and Other Stories”, compilação e prefácio de Leonard Woolf

QUE CAVALOS SÃO AQUELES QUE FAZEM SOMBRA NO MAR.j

 

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publicado às 17:35


por Oldfox, em 30.08.16

Uma Biografia de Mary Shelley

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Retrato de mary Shelley por Richard Rothwell 

O Melhor dos Tempos, o Pior dos Tempos

 

Mary Wollstonecraft Godwin (Shelley) nasceu em Londres, a 30 de Agosto de 1797, carregando consigo o peso avassalador dos seus ilustres progenitores, respectivamente Mary Woollstonecraft, famosíssima feminista e escritora, e William Godwin, filósofo político e intelectual de renome. Órfã de mãe aos onze dias de vida e a crescer numa família nada convencional, Mary tornou-se, de moto próprio, uma personalidade complexa e rica, merecedora de um olhar aprofundado e crítico.

Parece quase impossível que, aos dezanove anos, uma mulher, no início do século XIX, tenha escrito uma das obras mais emblemáticas de toda a Literatura. Em 1814, depois da precipitada fuga de Inglaterra com Percy Shelley (que era casado), os apaixonados instalaram-se na Suíça onde, como é do conhecimento geral, a ideia para um livro de terror germinou durante um serão, numa roda de amigos, que incluía Lord Byron e o seu médico John Polidori. Enquanto uma formidável tempestade se abatia sobre o Lago Genebra, "Frankenstein ou o Novo Prometeu", ganhava vida nas mãos febris de Mary. O romance, que conta a história de um médico que cria uma monstruosa criatura a partir de pedaços de corpos, conjuga o horror do "romance gótico" com o mito da criação e da maternidade e inclui referências aos avanços da Ciência de então, às experiências no âmbito da electricidade/galvanismo, da medicina forense e dos estudos de psicanálise. "Frankenstein", publicado finalmente em 1818, entrou naturalmente na corrente popular com múltiplas e posteriores adaptações cinematográficas (a de 1931, realizada por James Whale, com Boris Karloff, foi decisiva) e uma vasta apropriação por parte de outros meios de entretenimento,

A relação de Mary com Percy Shelley  – o vagabundo sempre inquieto, genial poeta, rebelde, anarquista, ateu, adepto da não-violência, vegetariano, e defensor acérrimo das classes desfavorecidas – é uma das mais dramáticas e apaixonadamente "românticas" desse tempo de arrebatamento, de auto-destruição e de idealismo revolucionário. Shelley era, para Mary, o companheiro que procurava, um homem capaz de a acompanhar na sua permanente sede intelectual. William Godwin, apesar das suas ideias liberais, desaprovou violentamente a relação da filha, obrigando-os a uma permanente vagabundagem que arrastou, também, membros das respectivas famílias, amigos, e uma sucessão de tragédias. A lealdade e devoção de Mary em relação a Shelley, (casaram finalmente em 1816), nem sempre foi correspondida. Tinham uma relação complexa, marcada por infidelidades e pela morte prematura de pelo menos três dos quatro filhos. Mary passou os anos de casada permanentemente grávida e em viagem, experimentando uma sucessão de dramas – os suicídios da meia-irmã de Mary, Fanny, e o da primeira mulher de Percy, Harriet, um aborto quase fatal que só não a vitimou porque Percy a mergulhou em água gelada para estancar a hemorragia – e permanentes dificuldades financeiras.

Quando finalmente regressou a Londres, depois da última "aventura italiana" a sua condição não podia ser mais devastadora. Shelley afogara-se nas águas do Golfo di Spezia, deixando-a viúva, pobre e destituída, abatida moral e fisicamente, com um filho de quatro anos. O ideal romântico de uma vida livre e aventurosa, dedicada à leitura e à escrita, ao amor, à amizade e ao companheirismo, desvanecia-se no rescaldo da tragédia. Na pira ateada na praia por Lord Byron, onde se consumiu o corpo martirizado do autor de Epipsychidion, (essa meditação magnífica sobre a natureza do amor absoluto), ficavam as cinzas de uma época, de uma forma de existência, de uma utopia que se transformara em pesadelo.

E embora "Frankenstein" continue a ser a sua obra mais conhecida, convém lembrar que Mary foi também autora de mais seis romances, uma novela, dramas mitológicos, contos, artigos, relatos de viagem e estudos biográficos. Na extraordinária obra "The Last Man", (1826) onde recria a figura de Percy Shelley e de outros amigos, Mary convoca um final apocalíptico para o universo, antevê as pragas modernas como a Sida, questiona os ideais políticos do Romantismo e desafia as premissas avançadas pelos seus contemporâneos, alicerçadas numa revolução idílica dos costumes mas corrompidas pelas fraquezas inerentes ao ser humano

A complicada existência de Mary Shelley, que inclui segredos como a sua relação com Jane Williams e o seu progressivo conservadorismo, ao arrepio da imagem que estabelecera para si própria, tem sido objecto de inúmeras pesquisas: o estudo de Muriel Spark (1951), reeditado em 2013 e a biografia de Miranda Seymour (2001) continuam a ser boas referências. No entanto, este livro de Cathy Bernheim, alicerçado numa vasta documentação que inclui correspondência, diários e outras menções importantes é um óptimo contributo para um conhecimento mais aprofundado desta personagem invulgar, visionária, mulher firme e independente, capaz de exercer o seu direito de escritora e de viver da escrita. Em "The Last Man" Mary recria, pela voz desesperada de Lionel, a essência mais pura da solidão humana: "Sob o sol do meio-dia ou à luz da lua, eu era o único ser com aparência humana, e o único que podia articular pensamentos; e, quando eu dormia, dia e noite eram espectáculos que ninguém via". Esta imagem desoladora corrobora a visão de uma mulher que acompanhou e experimentou as mais nobres e românticas aspirações, para depois compreender, com uma lucidez devastadora, a derrocada das ideias, o fim do amor e da amizade e a perpétua ameaça da morte, que, para ela, chegou finalmente, como resultado de uma outra "praga" – o cancro – em 1851.

 

Mary Shelley. Uma Biografia da Autora de Frankenstein, Cathy Bernheim, tradução José Alfaro, ed. Antígona, 5 *

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publicado às 14:38


por Oldfox, em 25.02.16

O Evangelho segundo Marilynne Robinson

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 O Evangelho segundo Marilynne Robinson

 

"Lila" é o quarto romance da escritora americana Marilynne Robinson e o mais recente da trilogia - que compreende "Gilead" (2004) e "Home", (2008) - onde a autora explora a relação de amizade que une profundamente dois pastores evangélicos – John Ames e Jack Boughton – e as suas respectivas famílias, cujos destinos estão intimamente ligados, no ambiente fechado das difíceis relações parentais e filiais, nos desgostos e alegrias que acarretam. Tanto a acção, centrada numa pequena cidade imaginária no noroeste dos Estados Unidos – não muito diferente da terra natal de Robinson - como as personagens transitam de livro para livro sem ordem cronológica. Na realidade, "Lila" é uma prequela de "Gilead" e reencontramos, aqui, John Ames que, com toda a sua bonomia e amor pela vida, conhece bem a dor da perda: a primeira mulher e filha morreram há muito e a sua vida solitária, dedicada aos membros da sua congregação, segue o curso monótono dos dias, até que, já com 67 anos, é irresistivelmente atraído por Lila, uma jovem que vive sozinha numa cabana em ruínas e, que, tal como ele, é uma "especialista" em solidão e despojamento.

Lila tinha apenas cinco anos quando Doll, uma mulher com uma mancha no rosto, uma vagabunda corajosa e livre – e, também, uma assassina – a encontrou num alpendre à chuva e pegou nela, levando-a para longe da família que a ignorava e negligenciava. Doll protegeu sempre Lila, ferozmente, e ambas calcorreiam a América, faça chuva ou sol, à deriva e ao sabor dos ventos, juntando-se esporadicamente ao bando de Doane e Arthur, uma espécie de troupe de saltimbancos que só se detém quando é necessário. O cenário, tão dramaticamente capturado nas fotografias de Walker Evans e de Dorothea Lange, é o da grande depressão na América, com os fantasmas da fome, do frio e da doença sempre a persegui-los. Doll e Lila, duas almas gémeas, duas sombras na paisagem, ligadas pelo desejo da fuga, da liberdade e da solidão, são como ecos das personagens do primeiro e fulgurante romance de Robinson, "Housekeeping" (Laços de Família).

Depois do medo, vencidas as resistências, Lila, que se sabe rude e ignorante mas que quer conhecer o significado das palavras – copia sozinha e laboriosamente, trechos da Bíblia – casa com Ames, não sem este a ter baptizado. E esse baptismo à beira rio, com a água a escorrer sobre Lila e um peixe-gato a debater-se, agonizando na erva, ao sol, é uma das cenas mais comoventes do romance, aquela em que o conflito brutal que se desenrola permanentemente na cabeça de Lila parece, temporariamente, apaziguado. A sua permanente desconfiança em relação a uma possível felicidade – isto é, amor, conforto, protecção, companheirismo – é momentaneamente esquecida ao sentir a mão de Ames pousada na sua cabeça, nessa bênção que "queima" e também a faz chorar. A intimidade, pela qual tanto anseia e que rejeita com o mesmo grau de ferocidade, provoca nela um misto de profunda exaltação e cruel sofrimento, uma vez que, ao abdicar da solidão, sabe que está a aceitar algo que desconhece. A inquietação de Lila não acaba com o casamento – tem sempre dinheiro guardado para apanhar a camioneta e fugir – mas a maternidade transforma-a e será a esse filho que Ames escreve, no fim da vida, a longa carta que surge em "Gilead".

Há qualquer coisa de ferino e de primordial na personagem de Lila, reminiscente do ideal de Rousseau, cujo mito do "bom selvagem" vai ao encontro da concepção de que o contacto estreito com a natureza funciona como antídoto para uma sociedade em desagregamento. A diferença reside no facto de a "inocência" de Lila ser permanentemente desafiada, tanto pelo seu próprio intelecto como pelo confronto manso, mas determinado, com os outros. A sua luta silenciosa e interior tem a dimensão épica própria das heroínas que vencem as dificuldades de uma infância de abandono e privação, de uma juventude desenraizada e perigosa e de uma idade adulta na qual permanece o rasto de profundos danos emocionais.  

Robinson é claramente influenciada por William Faulkner que recorreu profusamente à Bíblia, na sua obra, acentuando tanto o lado luminoso, redentor e inspirador como os aspectos mais sombrios, de castigo e perdição. (Repare-se que Gilead funciona como a Yoknapatawpha de Faulkner, um lugar para onde converge e onde se centra toda a acção.)

"Lila" é uma obra sobre a redenção e sobre os desertos ou caminhos de espinhos que é necessário atravessar para alcançar a suprema felicidade, se por um acaso, ela existir, algures. Robinson é incomparável na descrição das maravilhas do mundo imanente – em cada detalhe da matéria, da luz, das texturas, dos movimentos – enaltecendo a sua insuperável beleza perversamente tingida por um perene sentimento de luto e de perda.

"Lila" é, ainda, um romance com uma prosa inspirada e luminosa de cariz profundamente cristão – referências bíblicas (aqui, ao Livro de Ezequiel), a luta entre o bem e o Mal, entre a luz e as trevas, entre a inocência e a corrupção, entre o amor e o ódio, entre a solidão e a pertença – que nos remete claramente para o universo violento e severo da católica Flannery O'Connor, embora Robinson não faça uso da tremenda e incomparável comicidade negra e fulgurante, que caracteriza a obra da escritora sulista.

 

Lila, Marilynne Robinson, tradução de Maria do Carmo Figueira, editorial Presença.

Artigo publicado no jornal Público, Lisboa.

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publicado às 12:39


por Oldfox, em 10.12.15

Alexandre o Grande por Laurent Gaudé em "A Última Viagem"

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Todos os caminhos vão dar a Babilónia

 

Alexandre o Grande, o visionário que decidiu conquistar o mundo, modelo para Genghis Khan e Napoleão, entre outros de sinistra memória, foi um fenómeno de direito próprio. Aos vinte anos, quando se sentou no trono da Macedónia, era já um prodígio nas artes da guerra e um astuto pensador, em parte graças aos ensinamentos do seu mestre, Aristóteles. Entre 334 e 324 a.C. , o seu vigoroso exército avançou para Leste como uma potente e bem oleada máquina, varreu todos os oponentes, arrasou cidades, saqueou e pilhou, chegando tão longe quanto o subcontinente indiano, onde as tropas se recusaram a avançar mais. Por alturas do seu trigésimo aniversário, Alexandre, político implacável, estratega brilhante, amante de mulheres e de homens com igual fervor, generoso em extremo e ferozmente cruel – executou inúmeros amigos e inimigos – reinava como senhor absoluto num Império que aproximou a Europa da Ásia e transformou a História para sempre. Na faustosa cidade persa de Susa, em 324 a.C., ordenou o casamento em massa de macedónios com princesas persas e o próprio Alexandre casou com Stateira, a filha do rei Darius III, tendo oferecido a irmã desta, Dripetis, ao seu amigo mais próximo, Hefestião. Esta manobra diplomática suscitou críticas por parte dos que achavam que Alexandre - que adoptou também o título oriental de "rei dos reis" - se estava a tornar demasiado indulgente e sensível ao luxo e à licenciosidade. Os textos da época e a "biografia" de Plutarco apontam para um gosto cada vez mais acentuado pelo hedonismo e para um afrouxamento dos instintos guerreiros. A verdade é que Alexandre, aos trinta e dois anos, no apogeu da sua glória, morreu subitamente em Babilónia. 

É a partir daqui, mais exactamente durante um banquete orgiástico no palácio de Nabucodonosor, que se desenrola a narrativa de Laurent Gaudé (n.1972, Paris). O poderoso Alexandre, que nunca perdera uma batalha, que sobrevivera a todas as provações e ferimentos, que se considera invencível, (um semi-deus como o seu herói, Aquiles), tomba, preso de dores excruciantes, como se atingido por um raio, enquanto a música toca e todos riem, dançam e bebem. Alexandre é levado para os seus aposentos e agoniza, à medida que a notícia se espalha e, dos quatro cantos do Império, a multidão converge para Babilónia, velando e suspirando, à espera do trágico desenlace.

Alexandre "não sabe morrer", assim se queixa a voz fantasmagórica que persegue e ecoa pelos corredores do palácio. O grande senhor da guerra não cai, como o herói da Ilíada, no campo sagrado da batalha mas definha em febres pestíferas e em delírios enquanto as carpideiras, à sua cabeceira, se revezam para lhe auscultar o coração e se aprontam para o chorar mal ele exale o último sopro.

Uma histeria colectiva – " de que viveremos, depois de ele morrer?" – percorre os súbditos, os generais, os amigos de infância outrora fiéis, que imediatamente se dilaceram entre si, como abutres disputando os restos do seu senhor. A história do cortejo funerário que se agiganta para levar os restos de Alexandre de volta a "casa", para que a urna seja depositada nas mãos da mãe, Olímpia, e se desloca ao longo de dois anos sem nunca chegar à Macedónia, é recriado vividamente por Gaudé.

"A Última Viagem" (" Pour Seul Cortège", no original) é um exercício sobre o poder e a morte, numa linguagem ricamente exuberante, talhada a golpes de cutelo e onde não existem longas meditações filosóficas nem reflexões conflituosas mas sim cenas sucessivas que alternam entre a calma e o turbilhão, num ritmo encantatório que serve à perfeição o carácter mítico (e místico) que envolve esta estranha travessia. O estribilho entoado pela multidão - "a quem pertences, Alexandre?" - serve de mote para esta bizarra procissão, que vira as costas, funestamente, ao sol nascente, ladeando o corpo embalsamado e enclausurado no seu pesado casulo de oiro maciço, pungentemente chorado pelas carpideiras, disputado por senhores da guerra e desviado como um troféu. Gaudé convoca poderosamente os sentidos numa toada de diferentes vozes que vão descrevendo as penosas marchas, as incursões dos exércitos rivais, o ruído tremendo das armas, o tombar dos cavalos, os gritos de agonia e o cheiro a sangue e a cadáveres. Da glória imperial, da doçura dos cânticos nos jardins de Babilónia, dos tesouros acumulados na campanha, vai restando cada vez menos, como faz notar a leal Dripetis, figura principal e trágica musa desta história.

Não será demais recordar que Laurent Gaudé é um homem do Teatro, algo que sobressai na sua prosa, ao compor "quadros" dramáticos referentes a cada situação. E se o autor mistura aventureiros e bandidos no famoso "O Sol dos Scorta" (prémio Goncourt, 2004), em que a acção acompanha a saga de uma família "amaldiçoada", aqui, retoma a ideia dos grandes feitos e das grandes misérias, nos destinos de seres de excepção. Um adivinho indiano predisse que Alexandre não deveria entrar em Babilónia e outro homem sábio afirmou que o lugar onde o seu corpo descansasse seria o "mais próspero do universo". Ptolomeu, seu companheiro de armas, enterrou-o em Alexandria, para fazer cumprir a profecia, mas os saques que se sucederam fizeram com que os restos mortais do maior guerreiro de todos os tempos desaparecessem sem deixar rasto. A saga de Alexandre, um tema infinito, tornou-se mais duradoura do que a glória efémera do senhor do mundo, com o seu cavalo Bucéfalo e a fronte coroada de oiro.  

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publicado às 13:02


por Oldfox, em 05.11.15

O LIVRO NEGRO de Hilary Mantel

Rolem as Cabeças

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 Thomas Cromwell pintado por Hans Holbein, 1532 - 34

Está sempre muito frio na Inglaterra de Hilary Mantel e não há lareiras, peles ou jóias que amenizem o calafrio que percorre os corpos dos seus protagonistas neste “O Livro Negro”, sequela de “Wolf Hall”, (também agraciado com um Booker) com Thomas Cromwell como epicentro de um furacão que varreu um reino em rápida mudança religiosa, política e social.

E embora a acção deste romance comece no Verão, não há nada de caloroso na “orgia de desmembramento” observada por Cromwell e pelos seus nobres convidados, durante a caçada com falcões que Mantel esgrime habilmente, como metáfora dos acontecimentos que se seguem. Ao longo do livro, os seres humanos imitarão as aves de rapina, predadores que não temem, não perdoam e não hesitam quando se lançam sobre as suas presas, embora voltem a poisar, com relutância, no punho engalanado e protegido dos seus amos e senhores.

Mas a forma como Thomas, filho de um ferrador cervejeiro, se elevou à categoria de braço direito do rei Henrique VIII, para quem faz o trabalho sujo, mudando destinos com a facilidade de um prestidigitador, é algo que, por detrás das suas costas, as famílias da antiga nobreza comentam, recusam-se a compreender e muito menos, a aceitar. Cromwell é astuto, maquiavélico e prudente. Ele vigia, observa e analisa, quer uma Inglaterra “moderna”, abastada, bem alimentada, livre de superstições e de mediocridade. Sabe bem o que é pertencer a um povo assustado e fraco que sofre a fome e o frio, dividido pela fé, volátil e caprichoso, que se junta em matilha para presenciar as execuções daqueles que, pouco tempo antes, tinha aplaudido com fervor. Ele, Cromwell, correu mundo, aprendeu, serviu os príncipes europeus, estudou-lhes os hábitos, as manhas. (Um pouco antes do torneio que marca o ponto crucial do livro, quando Henrique sofre um acidente, Cromwell recorda a sua amizade de passagem com um português “especialista em justas” que lhe ensina todos os truques numa noite, em Veneza)..

Thomas deve tudo ao rei: a sua fortuna crescente, as suas casas, o título (que recusa), a influência, o poder. No entanto, constata ele no segredo da sua mente tortuosa, Henrique também lhe deve tudo: o afastamento da primeira mulher, Catarina de Aragão, a anulação do primeiro casamento, a força para se separar de Roma, as complicadas manobras diplomáticas, o apaziguamento das velhas famílias aristocráticas, a organização das suas casas e do seu reino, a forma implacável como retira aos papistas as suas riquezas que vão directamente para os cofres da coroa; deve-lhe, ainda, o troféu máximo, essa Ana Bolena, angulosa e felina, perseguida durante anos e finalmente instalada no lugar de rainha. Mas nem só de luxúria vive um rei. E um soberano como Henrique quer que a “bruxa” Bolena que o enfeitiçou, cumpra a sua parte, ou seja, produza um filho varão e não uma sucessão de abortos, complicações e (apenas) mais uma rapariga, Elizabeth. Como se não bastassem os problemas com Mary, a filha de Catarina! Não tarda muito para que Cromwell se dê conta da distracção do seu monarca – ele que lhe antecipa os pensamentos – e do olhar que este pousa com frequência na diminuta figura de Jane Seymour, aia de Catarina e depois de Ana Bolena, figura familiar no círculo da Corte, filha desse Sir John de Wolf Hall que tanto se destacou ao serviço de Henrique VII e do próprio Henrique VIII.

É altura de colocar a questão: o que distingue o relato desta velha história pela mão de Hilary Mantel, uma vez que a bibliografia relativa a este período da História inglesa é extensíssima? (Ah, esses Tudor! Será que nunca nos cansamos das suas vidas atribuladas, das suas traições e vinganças, das sua intrigas e mortes violentas? Desabafa Margaret Atwood no início da sua recensão no jornal The Guardian). Sim, como conseguiu Mantel acrescentar um punhado de novas emoções a esta popular e antiga tragédia?

Há, evidentemente, o ritmo da narrativa: Hilary Mantel não tem pressa. As palavras revolteiam e alongam-se em torno dos acontecimentos, à semelhança dos falcões de Cromwell e tal como o próprio vai urdindo as suas teias, no jogo complicado de agradar ao seu rei, de cumprir com as suas vontades – que o próprio Cromwell tem de adivinhar e até induzir – e de contornar dificuldades. Porque o esplendor do soberano, a luz que lança sobre os seus súbditos e sobre o seu reino pode apagar-se e transformar-se em negrume, à mais pequena contrariedade. Henrique, o homem letrado, o poeta sensível, o ágil dançarino e valoroso amante vai-se transformando, perante os nossos olhos, num homem cada vez mais velho, brutal, imprevisível e caprichoso. O humor de Henrique é volátil e tanto ofusca com a sua alegria e bonomia quanto aterroriza com as suas cóleras. E Mantel é intensamente hábil na forma como descreve com a mesma intensidade poderosa, os momentos mais líricos e idílicos e os mais sangrentos e violentos, à semelhança do pintor da Reforma, Hans Holbein, o Jovem que soube como ninguém fixar os traços dos principais actores no palco desse dramático tempo.

“O Livro Negro” é uma obra agudamente visual, em que, para além das paisagens poderosas, dos detalhes do guarda-roupa, das casas e dos rostos, as cores e o seu significado invadem as páginas: há, evidentemente, o vermelho do sangue, que contamina tudo e tinge o branco da neve que cobre ruas e estradas, permanentemente sulcadas pelos agentes e espiões de Cromwell, do rei, das rainhas, dos embaixadores. O amarelo solar do vestido sumptuoso de Ana Bolena, que ela enverga para mostrar a sua alegria no dia em que festeja a morte de Catarina, representa uma das muitas atitudes de desafio que ditarão o seu fim e, finalmente, o negro do céu de tempestade, das masmorras da Torre e do “livro” do título (onde estão assentes todas as tarefas e movimentos no espaço fechado da Corte), caracteriza a ausência de luz que assombra as mentes dos protagonistas, enredados nas suas danças mortíferas, enquanto o cerco se aperta em torno da rainha, como um tenaz punho de ferro manobrado pelos múltiplos, novos e velhos, inimigos dos Bolena. É claro que Cromwell, em sua própria defesa, pode gabar-se de ter contribuído para a paz no reino, esse estado tão difícil de alcançar quando inimigos domésticos e estrangeiros se encontram sempre à espreita, na expectativa de uma eventual fraqueza. Por isso, “O Livro Negro” é, também, um tratado sobre política, sobre o difícil jogo de xadrez das infindáveis concessões, ameaças e negociações necessárias para a estabilidade. Enquanto Cromwell se afadiga, se desdobra em múltiplos afazeres, conspira e manipula, a orgulhosa cabeça de Ana Bolena está cada vez mais próxima do cepo do carrasco e Jane Seymour caminha serenamente para o trono, à medida que Henrique vai ganhando peso e perdendo a saúde e a energia dos seus vinte anos, tornando-se cada vez mais brutal, irracional e sedento de sangue.

Nós, que já sabemos o desfecho da História, maravilhamo-nos perante a ironia que os seus intervenientes nunca puderam desfrutar. A pequena, pudica e roliça Jane Seymour sentou-se no trono e deu ao rei um varão, mas morreu por complicações do parto, embora tenha sido a única a ter a honra de ser sepultada ao lado de Henrique. O seu filho, Eduardo VI, nunca chegou verdadeiramente a governar e foi a filha da “prostituta “ Bolena que, afinal, se tornou uma das rainhas mais célebres de toda a História e certamente a mais poderosa de Inglaterra. Cromwell subiu tão alto que sofreu uma vertiginosa queda e nenhum dos seus famosos expedientes o salvaram de um destino inexorável. Os murmúrios e as confidências, as indiscrições e as intrigas que ele tão bem soube engendrar viraram-se contra ele, no final, e a narrativa de Mantel ilustra bem essa sensação de perder o controle e de deslizar para a perdição quando a vontade se torna demasiado arbitrária e o poder absoluto corrompe sem remissão. Mas essa parte está ainda por contar no próximo e esperado “The Mirror and the Light” que completará a trilogia. Quedemo-nos no final de “O Livro Negro” (“Bring up the Bodies” no original) com o poderoso Secretário, quando ele pode ainda desfrutar o prazer de ver as cabeças dos seus principais inimigos a rolar no cadafalso.

 

O Livro Negro, Hilary Mantel, tradução de Miguel Freitas da Costa, ed. Civilização

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publicado às 14:27


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