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por Oldfox, em 15.07.13

Crónica - A Estranha Vida dos Objectos I

 

Achei sempre que os objectos têm existências muito bizarras, misteriosas e fantasmagóricas, pouco apreendidas e muito menos compreendidas por nós, pobres mortais. Por muito superior que a raça humana se considere, a verdade é que perecemos a uma velocidade vertiginosa, enquanto que certos objectos – alguns de uma humildade e simplicidade arrasadoras – permanecem com a mesma forma ao longo de milhares de anos, impávidos perante a nossa hecatombe.

Quando há separações entre casais, um dos problemas frequentes é o da repartição das coisas, um assunto muito melindroso, doloroso e que, por vezes, deixa marcas profundas. Quando morre alguém que amamos – uma separação ainda mais radical – os objectos de quem parte ficam a assombrar os herdeiros, por vezes durante séculos, ou transformam-se numa espécie de amuletos, coisas com propriedades xamânicas que conjuram a memória, causando sofrimento, melancolia, sentimento de perda profundo, nostalgia e a irrevogável certeza do "nunca mais". Esse passe de mágica, esse tipo de assombração, tanto pode ser provocado por objectos valiosos como, amiúde, por quinquilharia, coisas sem valor. Podemos perder ou serem-nos roubadas jóias, relógios, canetas, livros antigos, quadros de valor incalculável; mas quantas vezes, ao encontrarmos no fundo de uma gaveta, no bolso de um casaco, numa caixa perdida num sótão, um cordel, uma folha seca, uma pena de pássaro, um seixo, um bilhete de comboio, a conta de um bar, uma simples peça de roupa, para mergulharmos imediatamente numas férias infantis, num passeio domingueiro, numa viagem, num rosto, num corpo, num encontro secreto de amantes, num voo não concretizado, num abraço, num derramamento de lágrimas ou num gesto de violência brutal.

Os artistas, esses, sempre gostaram de objectos e não é necessário invocar Leonardo da Vinci e outros génios para recordarmos tantos pintores, escultores e mais recentemente, fotógrafos e cineastas que se perdem com pormenores de coisas inanimadas, as tais “naturezas-mortas”, “still life” ou “bodégons” que são testemunhos de vidas, pensamentos e emoções e reflectem, por vezes com maior pungência do que representações humanas, o estado de espírito de um homem ou de uma mulher, o gosto de uma época, o ritmo do dia-a-dia, o Zeitgeist .

No século XIX, com o incremento dos estudos científicos e o acirrar da curiosidade no sentido de aprofundar o conhecimento, desenvolveu-se frenética e furiosamente o conceito de “Cabinet de Curiosités”, (Cabinet of Wonder, e, em alemão Kunstkammer ou Wunderkammer ) uma moda que vinha já da Renascença, fruto da descoberta de Novos Mundos, e que consistia em reunir o maior número possível de objectos - artefactos bizarros e estranhos, oriundos de culturas e paragens longínquas - por vezes falsos, que fascinavam e intrigavam o coleccionador. As peças destas colecções eram muitas vezes desenhadas e mais tarde fotografadas e publicadas para fins científicos e de estudo. 

Picasso , Braque e os seus seguidores do movimento a que se deu o nome de Cubismo, “quebravam as formas, os objectos apresentando diversos pontos de vista  no intuito de alargar  o espectro de conceitos afiliados a cada objecto. “ Desta forma, alteravam o sentido de profundidade, enfatizavam a ambiguidade do espaço, baralhavam o sentido. O seu deslumbramento em relação à arte oriunda de outras partes do globo – principalmente de África e da Oceânia – ancorava-se nessa ideia da desconstrução da forma, na quebra , e mesmo ruptura, de um ideal de beleza ocidental oriundo da Cultura clássica que sancionava o equilíbrio e a harmonia. Os surrealistas perderam-se de amores por objectos encontrados ao acaso – repare-se na deambulação do personagem André, por Paris, em perseguição de Nadja, no livro do mesmo nome de André Breton – objectos esses que adquiriam imediatamente um significado e uma tremenda e fortíssima carga simbólica. 

A sobrevivência dos objectos é, também, um assunto misterioso e envolto em lendas como a do Tosão de Ouro, a do Graal, a da espada do Rei Artur e muitas outras. Objectos reais ou imaginários têm atravessado os tempos, desaparecem em catástrofes naturais, em guerras, em saques e pilhagens, reaparecem, esfumam-se de novo, voltam a surgir do outro lado da Terra, intactos ou transfigurados.

Uma vez que um dos principais objectivos da Arte é permitir a experiência do prazer através da intuição da vida, faz parte da tarefa do artista revelar as referências, os misteriosos caminhos de unidade de discurso que se desenrolam sob a fina camada da superfície, disponível apenas para a percepção comum. As relações subtis entre as coisas – provocando, aparentemente, actos isolados e incidentes sem grande importância, pelo menos à partida -  criam linguagens ditas “poéticas” e neste contexto surgem como indícios com consequências não detectadas de imediato. É cada objecto que faz a ponte entre o pensamento e o sentimento, o “agora” e o “futuro”, a reacção e a emoção. 

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publicado às 18:28


5 comentários

De Luís Bento a 15.07.2013 às 18:58

Gosto do ritmo, da melancolia, do tom nostálgico da "cor sépia" que leio no texto, da memória, da sensibilidade....

A minha avó achava que os objectos guardavam a alma a quem tinham pertencido para, mais tarde, lha devolverem lá no céu....
Adorei a viagem que me proporcionou...

De Oldfox a 15.07.2013 às 19:14

Obrigada Luís Bento. A história dos objectos é muito pessoal e , por essa razão, infinita.Grande abraço.

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