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Imaginem uma história que trata do declínio físico, da morte, da perda, do medo, da decadência mental e de todos aqueles indícios - por mais pequenos que sejam - que nos mostram, em cada dia, ao acordar, que o tempo está a passar a uma velocidade vertiginosa e que, mais coisa menos coisa, vamos "bater a bota", "ir desta para melhor(?)", "esticar o pernil", "subir ao céu", "ir para os anjinhos", com a agravante de, antes, passarmos por certas humilhações, dores e sofrimento que, se não tivermos sorte, não nos matam depressa.
Imaginem que, ao ler o livro que conta esta história - centrada na personagem de Desmond Bates, professor de Linguística reformado e surdo como uma porta - não podem impedir-se de rir às bandeiras despregadas. Quem não leu "A Vida em Surdina" poderá pensar que é improvável que um herói tão pouco apelativo - não ouve nada, faz confusões com tudo, tem uma performance sexual que deixa muito a desejar, é assediado por uma jovem mas esse facto só lhe traz incómodos e complicações indesejadas, trata do pai com oitenta anos com alguma relutância, a primeira mulher morreu com um cancro, a segunda é uma empresária bem sucedida - possa despertar um interesse e uma empatia tão grande. O facto é que entre os risos loucos e as lágrimas, o leitor acompanha um determinado tempo da vida de algumas pessoas que lhe irão ficar na memória.
Não vos vou contar a história. O essencial está na contracapa do livro e o resto terão de descobrir por vós próprios. Mas gostava de chamar a atenção para algumas pistas: David Lodge ficou conhecido pela sua enorme erudição temperada pelo humor em obras que descrevem como ninguém a vida universitária, com ecos de Kingsley Amis e Malcolm Bradbury, seus dignos antecedentes no género. Aqui, esse mesmo universo distancia-se a toda a velocidade, uma vez que Bates - decalcado do próprio Lodge como ele faz questão em sublinhar numa nota final - está reformado (a princípio com uma sensação de alívio, gradualmente com uma sensação de perda) e as suas tentativas para se dedicar "à pesquisa" e a coisas que não tivera ocasião de fazer antes, lhe parecem muito pouco apelativas. Mesmo o assédio de uma aluna americana da sua antiga Escola que o lisonjeia e provoca , não chega para o fazer sair da modorra que o tempo livre e principalmente a surdez lhe proporcionam.
De notar, ainda, como Lodge cria um sub-plot - a história bastante aflitiva com a jovem estudante - para criar um certo suspense erótico e não só, como trata as relações familiares contemporâneas com profunda sensibilidade, como fala do casamento e do amor filial em termos absolutamente brilhantes e , ainda, como "alivia" a tristeza da própria condição do narrador - na 1ª e 3ª pessoas - e a da existência do seu pai ( teimoso, só, cheio de manias, doente) com momentos hilariantes, principalmente à custa da própria deficiência que lhe cria momentos de grande embaraço, tendo em conta os mal entendidos que provoca. A relação com a segunda mulher, Fred ( diminutivo de Winifred) é, mais uma vez, magistralmente tratada. Com o seu nome masculino, Fred está em perfeita décallage temporal e física do marido. Tem muito sucesso e ganha dinheiro com um trabalho que lhe dá prazer, fez algumas plásticas que a rejuvenesceram consideravelmente e parece estar no período mais esplendoroso da vida, com os filhos criados, uma vida social intensa e aberta a grandes sensações e emoções. A forma como este casal se afasta e aproxima é um dos musts do livro, bem como a forma como Lodge trata a cena da reunião da família no Natal. Acreditem, não podem perder. É tudo aparentemente muito simples, as personagens não podem ser mais humanas e a escrita é clara e sem floreados, embora de um rigor extraordinário. David Lodge, o escritor britânico e católico que sabe descrever as dores mais comuns dos seres humanos - a solidão, a perda, a incompreensão, a velhice, o desespero - é, também, capaz de lhes contrapor a esperança, o amor e uma espécie de ternura nada sentimental mas poderosa. Bates, como figura principal, olhado por si próprio e "de fora" é um pólo catalizador de grandes emoções: a solidão partilhada com o pai, a memória terrivelmente dolorosa da primeira mulher, a fricção erótica com Alex ( a jovem estudante) aliada ao medo do ridículo, a distância (ainda) cúmplice com o ambiente do campus, o afastamento, pelo menos aparente, em relação a Fred. Um retrato trágico e cómico de um homem de idade, das suas limitações e vitórias e, principalmente, da sua (cruel) condição humana.