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Nota: este texto serviu de apresentação de "Cadernos Italianos" de Eduardo Pitta, ed. Tinta-da-China. Em Livraria Almedina, Lisboa, 20 Fevereiro, 2013
Recomenda-se, também, a leitura das Memórias do autor, "Um Rapaz a Arder" (admirável) , ed. Quetzal, Lisboa, 2013
“ A Vida é um tecido de histórias contadas”, escreveu – e bem – o filósofo Paul Ricoeur, referindo-se ao facto de serem essas histórias contadas por nós e sobre nós próprios – reais ou ficcionadas – que constroem uma “identidade narrativa” que assegura a permanência do “eu” ao longo de todas as transformações. Na falta de uma substância identitária – de que nos serve um BI se não tivermos histórias para contar? – cada um de nós constrói a sua identidade, (re)contando-se.
Pedro Mexia refere tudo isto no prefácio que abre caminho para a leitura destes Cadernos, revelando a personalidade do autor e a forma absolutamente única como, em tão poucas páginas, nos arrasta para Itália, dando-nos a ver o seu esplendor – e outras vistas mais obscuras – através do olhar, dos sentidos e das emoções.
Eduardo Pitta é um viajante habituado a longas distâncias e a experiências muito diversas. Mas, para além isso, é um atento observador, senhor de um sofisticado sentido de humor e, ainda, alguém com uma ternura e generosidade muito especiais, o que nos permite – a nós leitores, ávidos de aventura – partilhar com ele, tanto as mais efusivas e deslumbrantes experiências como certos e desagradáveis contratempos. Com a sua escrita luminosa e directa o prazer é certo e, pelo menos no que me diz respeito, agradeço-lhe ter-me levado a (re)visitar, de uma forma muito particular, lugares pelos quais anseio sempre e dos quais sinto a falta.
Permitam-me uma ligeira divagação: a Itália – Roma, Veneza sem dúvida e também Florença – mesmo antes de ser Itália, fazia parte do roteiro daquele que foi chamado o "Grand Tour". Desde o século XVII que toda a gente com um mínimo de interesse pela Cultura e pelo conhecimento – ou simplesmente filhos varões com apelidos sonantes que queriam fazer jus às suas casas e deslumbrar os seus concidadãos – empreendia essa mítica viagem sem a qual ninguém podia ser considerado (a) – no século XIX foi a vez das mulheres se aventurarem – pouco mais do que um simples troglodita. A intenção era a de aprender tanto Arte como História, tanto Literatura como Música, sem esquecer os costumes, as línguas e as arriscadas aventuras eróticas cujo "sabor" era sempre mais apetecível longe dos lugares familiares. O Grand Tour era uma espécie de universidade global, de escola prática da vida, sendo indispensável a descoberta das raízes da civilização ocidental, a que não faltavam experiências gastronómicas, provas de vinhos e outras bebidas, bem como um verdadeiro mergulho na arte de bem viver, no hedonismo mais desenfreado e até num certo perigo que servia para aumentar os níveis de adrenalina. Basta reler “A Viagem a Itália” de Goethe para perceber quão importantes eram os contactos feitos durante o Tour – essa convivência com os bels esprits de cada época – e como a contemplação do Belo – veja-se o "efeito Stendhal" – podia mudar a existência de cada um.
John Locke, sempre preocupado com a educação, e defensor da aprendizagem a partir dos sentidos despertados pelo exterior, isto é por aquilo que nos é dado contemplar, apreciar, sentir na pele, tocar, referiu longamente a importância desta peregrinação que não seria religiosa mas sim intelectual, sensorial e destinada ao enriquecimento pessoal.
Eduardo Pitta recupera todo este espírito, toda esta tradição, porque tem a apurada capacidade para ver, para sentir, para experimentar e, principalmente, para descrever, para contar.
(Quando em Veneza, no Harry’s Bar, diz que “se sente que estamos envoltos numa aura de privilégio”- pág. 28 - o que ele quer dizer é absolutamente claro e remete-nos para a história de um lugar que mantém, ainda, à força da revisitação da memória, os seus ilustres fantasmas.)
As referências ao Florian, com uma história ainda mais longa, fazem-nos recordar imediatamente os expatriados ingleses e americanos – a lista é longa – bem como o ágil e muito veneziano Casanova que certamente por lá parou antes ou depois de se ter evadido da cadeia, não muito longe dali – um episódio recordado no livro – bem como Proust, Dickens e, evidentemente, Lord Byron. Aliás, Byron – que escreveu em Veneza o 4º canto de "Childe Harold" – viveu nessa cidade certas aventuras amorosas como a paixão por Marianna Segati, rapidamente substituída por Margarita Cogni que acabou por se atirar ao Canal numa noite em que discutiu com o poeta e este resolveu ficar a dormir na gôndola pessoal. Shelley e Keats, expatriaram-se em Itália e, mais tarde, Henry James que, por exemplo em "The Aspern Papers", nos remete para uma Veneza muito especial, protagonizou mais um incidente muito peculiar e também trágico, nesta mesma cidade, quando a escritora e sua companheira Constance Fenimore Woolson se suicidou, atirando-se ao Canal.
Se refiro tudo isto – e as histórias do Eduardo são muito mais emocionantes e pessoais, muito mais aliciantes e interessantes - é porque já Lord Byron se queixava dos odiosos “turistas” que, como muito bem diz Eduardo Pitta, constituem uma turba que salta de lugar em lugar a correr para tirarem uma fotografia junto às preciosidades para as quais nem olham.
Fiquei particularmente impressionada com a breve nota – o Eduardo faz-nos ver o mundo em duas ou três palavras – em que refere, ” A estupidez perante a Ponte dos Suspiros – pag. 56. Na verdade, quem é que terá prazer em tirar fotografias, em beijar-se e confundir os supostos suspiros de amor com os lamentos de dor e terror dos condenados que por ali passavam, a caminho dos calabouços da Inquisição?
Eduardo é magistral nestes apontamentos, vai directo ao assunto e mostra um desdém absolutamente justificado em relação às hordas de bárbaros que passam pelos palazzos, pelas galerias, museus e igrejas com uma displicência feroz e alarve ignorância.
Eduardo é um viajante sofisticado e nada sentimental e o toque de pontual nostalgia só engrandece a narrativa. Tão pouco é um explorador do “exótico” – exótico no pior sentido, claro – ou um basbaque perante os esplendores que se lhe deparam a cada passo. Eduardo é um “connaisseur”, alguém que, para nosso deleite, sabe a diferença entre um Tiepolo e um Dali, entre uma refeição romana e a chamada comida italiana, que sabe apreciar um Montepulciano d’ Abruzzo e que leu “A História da Minha Vida” de Giacomo Casanova, depois de ter, apropriadamente, comprado o grosso volume em Veneza.
“ Somos peregrinos em busca de Itália” escreveu Goethe num dos seus poemas, depois do regresso à Alemanha. E Auden falou da Viagem de Goethe para ilustrar a feroz necessidade de procura que não se restringe a uma simples e desencantada descrição de lugares e de coisas.
Com esta leitura é possível seguir os passos do autor pelas ruas, vielas, canais e becos de Roma e Veneza, constatando, a cada instante, a sua delicadeza, bom gosto e inteligência. Impossível deixar de referir a sua belíssima ligação com o Jorge, a forma tão espontânea e magnífica como o coloca na narrativa. Jorge, que não se deixa impressionar por fazer 51 anos em Veneza, que bebe uma “bica” em pé, ao balcão, num restaurante de bairro na mesma cidade, que mantém a sua calma olímpica perante as contrariedades da viagem. É comovente que tenham ido passar a lua-de-mel a Roma, que a menina do hotel os tenha posto num “quarto com Vista” – ah como me lembrei da pobre Lucy Honeychurch em Florença, do livro de Forster – que o Eduardo tenha ficado triste por não ter conseguido marcar um jantar especialíssimo num certo restaurante – ele que diz, e muito bem, que “As refeições …são um assunto demasiado sério para que o possamos deixar ao arbítrio da ignorância, dos impulsos ou do “ logo se vê”.
Com Cadernos Italianos recupera-se o sentido da viagem, o prazer da descoberta, da contemplação, da emoção. Revive-se o gosto dos gelados, dos vinhos, o odor dos canais, a chuva de Veneza, o calor de Roma, o olhar negro do gondoleiro – com o seu chapéu à deus Hermes – provável descendente do que levou Thomas Mann na peugada do seu Tadzio. É o reacender da sensação de pertença desse mundo arrebatador, culto, refinado, que nos moldou. E todo este esplendor remete-nos para o sentimento de perda e de desertificação intelectual e mental, a que estamos agora sujeitos. Os cafés de George Steiner já não fazem sentido numa Europa à míngua, desorientada e empobrecida. Veja-se a Grécia que se tornou um estigma e não um destino do conhecimento, a Itália em tumulto, a Espanha e Portugal de joelhos, sem esperança nem sentido.
É que estamos a viver uma espécie de holocausto cultural – se me permitem a expressão – uma hecatombe civilizacional de que será difícil recuperarmos. Só obras como esta nos poderão (re)direccionar para o que realmente importa.
A publicação de um novo livro sobre os múltiplos sinais, pistas, charadas, mensagens inscritas e significado do extraordinário quadro de Hans Holbein, the Younger “Os Embaixadores” ( 1533, National Gallery, London) continua a saga de incontáveis curiosos que se interrogam e esquadrinham as obras de arte para nelas tentar encontrar algo que forneça algum sentido às nossas perplexidades, espantos e medos. (Uma das últimas interpretações de “Os Embaixadores” “explica” a catastrófica crise económica e financeira que estamos a viver neste momento, algo que certamente será um espantoso isco para os Dan Brown deste mundo). “Os Embaixadores” é apenas uma entre muitas representações que escondem segredos, segredos esses que sempre exerceram um enorme fascínio sobre as mentes inquietas. Repare-se em toda a polémica gerada pela "Mona Lisa" e por outras obras de Leonardo da Vinci (como "A Virgem dos Rochedos”), pelo retrato do casal Arnolfini de Jan van Eyck ou, ainda, pela família de Filipe IV pintada por Diego Velázquez, um quadro mais conhecido por “As Meninas”.
Se estes e outros exemplos demonstram o poder da Arte – não só no que diz respeito à pintura mas também a todas as suas outras manifestações – a ligação ente Arte e Literatura ( próximo tema de uma Comunidade de leitores que irei liderar em Cascais ) é particularmente aliciante.
”Em “O Livro da Confissão”, um romance do irlandês John Banville, o narrador e personagem principal, Frederick Montgomery é um “connaisseur” requintado, bem-falante e sedutor cavalheiro, um snob que, lamentavelmente, é também um assassino; tudo porque se perde de amores por um determinado quadro e se vê compelido a matar a mulher que o apanha em flagrante delito, no momento do roubo. Em “Golpe de Mestre” Michael Frayn , escritor inglês, congemina uma deliciosa sátira cuja acção se desenvolve em torno da paixão desenfreada e da obsessão compulsiva em relação a uma obra de arte: Martin, o protagonista, descobre durante o jantar na casa de campo de um horrível casal, que marido e mulher – a seu ver totalmente desinteressantes, ignorantes e “básicos”- possuem (aquilo que lhe parece ser) um Brueghel, há muito desaparecido. Sem querer alertar os legítimos donos para a importância do objecto – arrumado a um canto, sujo e desprezado – Martin, um respeitável filósofo, perde a compostura e leva a cabo uma série de ardis para roubar o quadro, incluindo o de fingir um interesse amoroso pela sensual dona da casa que o arrasta para um implausível romance. Em “A Dívida ao Prazer”, John Lanchester – outro inglês - cria um tal Tarquínio Winot, mestre culinário e misterioso psicopata. Tarquínio, para além de perorar em relação à comida – pretexto para as mais elaboradas cogitações sobre a “impostura” da criação artística, sobre a relação entre jardinagem e padrões de ideologia estética e sobre a estreita ligação entre alimentação e política – tem ideias bem definidas, embora complexas, sobre o que é “arte” – ele próprio é “uma obra de arte” – e sobre o estatuto de génio.
Estes são alguns exemplos – haveria muitos mais, incluindo essa obra–prima sobre a perigosa complexidade da representação que é “O Retrato de Dorian Gray” de Oscar Wilde – da relação entre a Literatura e a Arte. O facto de serem aqui mencionados não se deve à muito equívoca sedução exercida por criminosos quando se escondem por detrás do álibi da sua “paixão” mas sim para recolocar a questão antiquíssima: até onde poderá ir o artista e, posteriormente, o coleccionador? O que é válido ou/e “aceitável”? Os pensamentos, palavras e obras convocadas por essa paixão que se apodera das pessoas – das que fazem Arte e das que a desfrutam – em relação a uma pintura, uma escultura, uma fotografia, um filme, um vídeo, etc. são fruto de que desejo, de que ansiedade, de que “fome”?
Cabe aqui, obviamente, recorrer a António Damásio, o neuro-cientista que tem estudado exaustivamente o cérebro humano, em toda a sua complexidade e magnificência e, em particular, o papel que as emoções desempenham na criação artística. Ele afirma que a força criativa provém da imaginação, sendo esta, “uma manipulação de imagens visuais, auditivas, tácteis ou olfactivas que alguém capta em determinado momento ou que vai buscar ao armazém de memórias” E acrescenta: “um grande artista ou inventor é aquele (ou aquela) que consegue usar a emoção para utilizar essas imagens – tanto as que se passam no mundo exterior como as que são produzidas e transformadas por um estado emocional – de uma forma extremamente rica.”
A Arte, secularizada há muito e definitivamente liberta de constrangimentos canónicos, está, para além do ímpeto de criar, estritamente ligada ao desejo da “posse” de um determinado objecto dito artístico, desejo esse tão premente e inflamado que pode assemelhar-se à experiência de uma poderosa relação erótica. Calouste Gulbenkian, Peggy Guggenheim, os Rothschild, os Thyssen-Bornemisza, foram provavelmente alguns dos mais impetuosos e implacáveis coleccionadores entre muitos dos que, ao contrário destes, escondem cautelosamente o seu vício.
Imagem: Barbara Kruger
Há uma doença infecto-contagiosa, que está a alastrar pelo País e não só, contaminando os confins da Europa e até Ilhas esquecidas, perdidas no oceano. Dá pelo nome de “vacuidade” mas este termo, aparentemente inocente, esconde uma maleita perniciosa, quase sempre fatal. A vacuidade começa por se alojar no cérebro, torna-se visível no fácies, manifesta-se no discurso e nos gestos e, ao espalhar-se, provoca danos irreparáveis. Montaigne meditou sobre este fenómeno, transformando-o em algo de elevado, com a sua habilidade superior em expressar o seu “eu-profundo”, “desenhando-o com a pena” e preenchendo assim o “grande vazio”. Montaigne há só um – embora seguido religiosamente por gente tão “cá de casa” como a tia Virgínia (Woolf) - mas não cito mais nomes sonantes para não maçar os leitores.
No entanto, é impossível ignorar Pascal que perorou longamente sobre o “horror ao vácuo” que impera na Natureza. E é essa tendência que, sem a capacidade e o génio de uns tantos iluminados, infelizmente se transformou em maleita fatal.
Vejamos: a maior parte dos nossos políticos, um número considerável de “comentadores”, certos legisladores e muitos ocupantes de cargos que exigem “substância”, matéria-prima, isto é, ideias, criatividade, enfim, estrutura” estão fortemente afectados por esta doença. De tão vazios, atraem inevitavelmente todo o lixo, todos os detritos, toda a imundície, toda a esterqueira que é mastigada e lhes volta a sair pela boca em forma de palavras infectadas, maléficas e distorcidas, embora aplaudidas por alguns que revelam assim um efeito colateral que dá pelo nome de “gáudio dos imbecis”.
Não há nada mais assustador do que um País refém da vacuidade. É pior do que um surto de peste medieval. Sem tratamento possível.
Recebi hoje o primeiro volume da “História da Minha Vida” de Giacomo Casanova, com tradução de Pedro Tamen e editado pela Divina Comédia. Um feito (e um risco) desta novíssima editora que assim faz jus, em audácia, ao cavaleiro aventureiro cujas proezas ficam, assim, gravadas na Língua de Camões. Em pleno Século das Luzes, este homem, profundamente dedicado ao prazer, participa activamente em todas as manifestações da alta sociedade do seu tempo, conhecendo, também, os antros mais pobres e degradados, em busca da satisfação dos sentidos e do amor, que sempre se lhe escapa.O que não admira porque Casanova, que nasceu a 2 de Abril de 1725 em Veneza e morreu a 4 de Junho de 1798, no Castelo de Dux, Boémia – actual República Checa - onde passou os últimos anos ao serviço do Conde de Waldstein e onde escreveu as suas Memórias, rejeita todo o constrangimento, é um homem livre, mesmo quando preso na cadeia de Veneza de onde, aliás, se evade espectacularmente.
Filho de actores, criado na cultura carnavalesca da sua poderosa cidade, negligenciado pelos pais, Giacomo enveredou por uma trajectória de sorte e de azar, ao sabor da aventura, do perigo e das contingências. Apesar de ter estudado no sentido de seguir uma carreira eclesiástica, os escândalos que o rodeiam, desde muito novo, cedo o fazem abandonar as ordens que tinha tomado. Foi soldado, músico, homem de letras, médico (curandeiro), discípulo da Cabala, espião, grande viajante, jogador compulsivo (ganha e perde fortunas com a alegria e desprendimento), conselheiro, cortejador e amante, privou com Voltaire, Goethe e Mozart, testemunhou a Revolução Francesa e as Guerras napoleónicas e deixou um retrato detalhado dos abalos e convulsões do seu tempo.
O prefácio desta edição é de Miguel Viqueira – que também seleccionou os textos.
Ler, também, “Cartas de Casanova. Lisboa,1757”de António Mega Ferreira, uma belíssima ficção em torno de uma hipotética viagem do veneziano a Lisboa, logo após o Grande Terramoto. Edição Sextante.L
A imagem é do filme Casanova, dirigido por Federico Fellini (1976).
Achei sempre que os objectos têm existências muito bizarras, misteriosas e fantasmagóricas, pouco apreendidas e muito menos compreendidas por nós, pobres mortais. Por muito superior que a raça humana se considere, a verdade é que perecemos a uma velocidade vertiginosa, enquanto que certos objectos – alguns de uma humildade e simplicidade arrasadoras – permanecem com a mesma forma ao longo de milhares de anos, impávidos perante a nossa hecatombe.
Quando há separações entre casais, um dos problemas frequentes é o da repartição das coisas, um assunto muito melindroso, doloroso e que, por vezes, deixa marcas profundas. Quando morre alguém que amamos – uma separação ainda mais radical – os objectos de quem parte ficam a assombrar os herdeiros, por vezes durante séculos, ou transformam-se numa espécie de amuletos, coisas com propriedades xamânicas que conjuram a memória, causando sofrimento, melancolia, sentimento de perda profundo, nostalgia e a irrevogável certeza do "nunca mais". Esse passe de mágica, esse tipo de assombração, tanto pode ser provocado por objectos valiosos como, amiúde, por quinquilharia, coisas sem valor. Podemos perder ou serem-nos roubadas jóias, relógios, canetas, livros antigos, quadros de valor incalculável; mas quantas vezes, ao encontrarmos no fundo de uma gaveta, no bolso de um casaco, numa caixa perdida num sótão, um cordel, uma folha seca, uma pena de pássaro, um seixo, um bilhete de comboio, a conta de um bar, uma simples peça de roupa, para mergulharmos imediatamente numas férias infantis, num passeio domingueiro, numa viagem, num rosto, num corpo, num encontro secreto de amantes, num voo não concretizado, num abraço, num derramamento de lágrimas ou num gesto de violência brutal.
Os artistas, esses, sempre gostaram de objectos e não é necessário invocar Leonardo da Vinci e outros génios para recordarmos tantos pintores, escultores e mais recentemente, fotógrafos e cineastas que se perdem com pormenores de coisas inanimadas, as tais “naturezas-mortas”, “still life” ou “bodégons” que são testemunhos de vidas, pensamentos e emoções e reflectem, por vezes com maior pungência do que representações humanas, o estado de espírito de um homem ou de uma mulher, o gosto de uma época, o ritmo do dia-a-dia, o Zeitgeist .
No século XIX, com o incremento dos estudos científicos e o acirrar da curiosidade no sentido de aprofundar o conhecimento, desenvolveu-se frenética e furiosamente o conceito de “Cabinet de Curiosités”, (Cabinet of Wonder, e, em alemão Kunstkammer ou Wunderkammer ) uma moda que vinha já da Renascença, fruto da descoberta de Novos Mundos, e que consistia em reunir o maior número possível de objectos - artefactos bizarros e estranhos, oriundos de culturas e paragens longínquas - por vezes falsos, que fascinavam e intrigavam o coleccionador. As peças destas colecções eram muitas vezes desenhadas e mais tarde fotografadas e publicadas para fins científicos e de estudo.
Picasso , Braque e os seus seguidores do movimento a que se deu o nome de Cubismo, “quebravam as formas, os objectos apresentando diversos pontos de vista no intuito de alargar o espectro de conceitos afiliados a cada objecto. “ Desta forma, alteravam o sentido de profundidade, enfatizavam a ambiguidade do espaço, baralhavam o sentido. O seu deslumbramento em relação à arte oriunda de outras partes do globo – principalmente de África e da Oceânia – ancorava-se nessa ideia da desconstrução da forma, na quebra , e mesmo ruptura, de um ideal de beleza ocidental oriundo da Cultura clássica que sancionava o equilíbrio e a harmonia. Os surrealistas perderam-se de amores por objectos encontrados ao acaso – repare-se na deambulação do personagem André, por Paris, em perseguição de Nadja, no livro do mesmo nome de André Breton – objectos esses que adquiriam imediatamente um significado e uma tremenda e fortíssima carga simbólica.
A sobrevivência dos objectos é, também, um assunto misterioso e envolto em lendas como a do Tosão de Ouro, a do Graal, a da espada do Rei Artur e muitas outras. Objectos reais ou imaginários têm atravessado os tempos, desaparecem em catástrofes naturais, em guerras, em saques e pilhagens, reaparecem, esfumam-se de novo, voltam a surgir do outro lado da Terra, intactos ou transfigurados.
Uma vez que um dos principais objectivos da Arte é permitir a experiência do prazer através da intuição da vida, faz parte da tarefa do artista revelar as referências, os misteriosos caminhos de unidade de discurso que se desenrolam sob a fina camada da superfície, disponível apenas para a percepção comum. As relações subtis entre as coisas – provocando, aparentemente, actos isolados e incidentes sem grande importância, pelo menos à partida - criam linguagens ditas “poéticas” e neste contexto surgem como indícios com consequências não detectadas de imediato. É cada objecto que faz a ponte entre o pensamento e o sentimento, o “agora” e o “futuro”, a reacção e a emoção.
Penso muito em Nelson Mandela. É uma injustiça nada poética que um verdadeiro guerreiro, um príncipe Thembu, um Madiba, esteja agora, no fim da vida, novamente preso. Preso, não num lugar com paredes e arame farpado, onde lutou, pensou, reagiu, liderou e de onde conseguiu libertar-se, mas encarcerado, isso sim, no seu próprio corpo indefeso. É claro que no momento em que o deixarem partir, um coro de boas e caridosas vozes, em todo o mundo, se levantará, citando milhares das suas frases – algumas nem serão dele, como sempre acontece – mas poucos seguirão o seu exemplo: ser valente, resistir, lutar, manter a dignidade, defender intransigentemente ideais mesmo que sejam difíceis de concretizar. E saber conviver com a imutável querela humana, dando o exemplo e apaziguando os extremistas.
Recordo que Mandela esteve preso em Robben Island – sujeito a trabalhos forçados e em condições terríveis – entre 1962 e 1982. Foi transferido para a Pollsmoor Prison em Tokay, Cape Town, onde permaneceu mais seis anos. Na sequência de uma tuberculose foi transferido, em Dezembro de 1988, para a Victor Vester Prison, perto de Paarl e finalmente libertado em 1990.
Gandhi, Mandela, Martin Luther King e Obama têm sido os políticos, os activistas que mais me ajudam a viver – curiosamente, são todos homens, nenhum deles é branco ou europeu, o que, para mim, quer dizer muito.
Felizmente, que nenhum deles foi (é) um santo imaculado.Há quem exija que homens e mulheres, cujas vidas são exaltantes e inspiradoras, sejam também obrigados a não errar nunca, o que é impossível. Quem pensa que tal acontece ou é ingénuo ou fanático. Gandhi conseguiu acabar com a ocupação inglesa mas não uniu os indianos nem remediou as desigualdades no seu País; Nelson Mandela acabou com o apartheid mas não com a violência na África do Sul nem com desigualdades tão gritantes como as da Índia. Martin Luther King foi uma figura decisiva na luta pelos direitos civis nos Estados Unidos da América mas não era um ser sem defeitos. ( Gandhi e King foram assassinados, lembram-se?) E Obama é claro que não transformou os EUA num paraíso. Mas quem tem o descaramento de lançar a primeira pedra?
Gandhi, Mandela, King, Obama lutaram muito para chegar onde chegaram, contra todas as hipóteses, que o seu tempo e as condições sociais e políticas respectivas impunham, sem aparente possibilidade de mudança. Penso muitas vezes nestas pessoas que conseguiram o impossível. Nós, por cá, nem conseguimos o "possível"!
“Though nothing can bring back the hour
Of splendour in the grass, of glory in the flower;
We will grieve not, rather find
Strength in what remains behind;”
…
William Wordsworth,“Ode: Intimations of Immortality from Recollections of Early Childhood”
Comecei a escrever um “diário” aos 9 anos e continuei a fazê-lo, com maior ou menor persistência e com regularidade variável, até aos dias de hoje. São cadernos de todos os feitios e tamanhos, (que irão certamente para o lixo, um dia destes), amontoados em dois gavetões, nas estantes que estiveram no escritório da quinta do meu avô paterno. Só quem não se meteu numa empreitada semelhante poderá escapar ao embaraço ( e espanto) semelhante ao que sinto ao ler os desabafos do meu “eu” longínquo, ao longo das diferentes fases da minha vida. Há tragédias infantis, crises místicas e ardores revolucionários, amores, pieguices, episódios hilariantes, apontamentos de viagens, revoltas, rompimentos sentimentais e, também, recortes de jornais com notícias que me interessavam ( aqui, na fotografia, uma notícia sobre a guerra do Vietname), bilhetes de concertos, convites, etc. Tudo perfeitamente banal. Os anos menos profícuos em termos de escrita foram os 12, 13, 14, 15, altura em que me limitava a apontar as idas ao cinema, à praia e às festas, bem como os nomes dos namorados, como beijavam e quantos beijos davam, coisas deste teor que chocaram a minha neta mais velha, sempre interessada na minha vida passada em Lourenço Marques (Maputo - Moçambique), onde cresci, rodeada de conforto, com pais severos mas compreensivos, inúmeras amizades e uma enorme e gloriosa liberdade .
Muitas vezes não reconheço aquela pessoa que escreve, embora sejam outras tantas as vezes em que me revejo nitidamente, numa espécie de clarão ofuscante. Senti o mesmo ao passar os olhos, recentemente, pelas cartas que enviava regularmente à minha Mãe, quando vim para Lisboa, para a faculdade. É como se aquela miúda que descrevia tudo com pormenores infindáveis – sem qualquer propósito específico, uma vez que nunca aspirei a ser um Boswell, ( nem tinha um Dr. Johnson por companhia) ou um sucedâneo da Duquesa de Northumberland e muito menos um Samuel Pepys ou um Casanova, embora tenha decidido imitar Virginia Woolf , logo que deitei mão aos seus Diários – fosse uma espécie de antepassada minha que, insidiosamente, preparou o terreno, semeou e planeou, formando a pessoa que hoje sou. (“The child fathers the man” e, no meu caso, “the woman”)
Wordsworth, na sua belíssima e célebre Ode, citada no início desta crónica, descreve exactamente o processo do crescimento nas diferentes formas de ver e de apreender o universo. Alternando desespero e esperança, no eterno ciclo da existência, Wordsworth faz, também, uma alusão interessante ao facto de chegarmos a este mundo, não como totalmente destituídos de conhecimento ou de memória, mas sim “equipados” com uma espécie de luz, vestígio de uma existência que é, depois, apagado da nossa memória, dando lugar a sucessivas vidas com as suas próprias memórias das quais só retemos uma ínfima parte.
Esta Ode tem muito que se lhe diga – principalmente sobre a “imortalidade” do Poeta” – mas fico-me com o sentimento de profunda nostalgia da infância que aqui está cantado. Não sofro desse mal mas continuo a maravilhar-me com a sucessão de vidas e de experiências, e a espantar-me com tanto de mim mesma que esqueço a cada instante, sem remédio. Claro que posso ler os ditos "diários". Mas será que me apetece? E serão eles, fiáveis? Não, claro que não. Por isso, voltam ao seu lugar e aí ficarão fechados. Até um dia.