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Explicou como poderíamos salvar-nos a ler Proust; mostrou como sabemos tão pouco e como desejamos, muitas vezes, o impossível; encaminhou-nos para o consolo da Filosofia; desmantelou o conceito de "estatuto" que nos persegue; levou-nos a viajar de uma forma intensa e a amar ainda mais; escandalosamente, afirma que a felicidade é possível. Alain de Botton, desdenhado por académicos mas firmemente activo na sua busca filosófica e metafísica, foi entrevistado por mim, em Lisboa, há uma meia dúzia de anos. Repesquei a peça porque me parece interessante para um início de semana, ainda no Verão..
Alain de Botton é um escritor e pensador peculiar. Nasceu na Suiça, é de origem judia (sefardita) mas foi educado em Inglaterra, a partir dos oito anos. As suas recordações das escolas – Harrow e Cambridge– não são famosas. Cedo se deu conta de que o que lhe ensinavam não servia para a vida que desejava ter. Por isso, resolveu escrever obras onde traça novos caminhos para a felicidade e para a realização pessoal, em moldes pouco comuns.Os livros que já publicou – ““Como Proust pode Salvar-lhe a vida”, “A Consolação da Filosofia”, “A Arte de Viajar”, entre outros – poderão ser catalogados como “manuais de auto-ajuda” mas Botton prefere chamar-lhes “Guias”, uma vez que neles não enuncia fórmulas infalíveis nem promete a felicidade eterna. Interessa-lhe, sobretudo, a ideia de “sabedoria”, um conceito muito antigo e quase tabu na nossa sociedade que,como sabemos, se afastou claramente do pensamento crítico e da reflexão. Usando, como base, o método dos filósofos da Grécia Antiga, Botton propõe-nos, de uma forma inteligente e acessível, uma contínua especulação sobre tudo o que nos rodeia, sobre o que sentimos e sobre a forma como agimos.
Para além de escritor, de Botton já produziu vários programas televisivos para o Channel 4, em Inglaterra e é co-fundador – com Neil Crombie – das Séneca Productions. Esta entrevista aconteceu a propósito da publicação em Portugal, pela Dom Quixote, do livro “Status. Ansiedade”.
A combinação destes dois conceitos – a procura incessante, na sociedade contemporânea, de um “estatuto” que está intimamente ligado à ideia de “ansiedade”, a qual, por sua vez, provoca “stress” e infelicidade – foi tema de uma conversa, quando o autor visitou Lisboa.
Helena Vasconcelos: Neste livro, foi sua intenção mostrar como, na sociedade contemporânea, sabemos muitas coisas mas que o significado delas nos escapa?
Alain de Botton: Exactamente. Por exemplo, nas Universidades as pessoas aprendem muito mas, na realidade, o verdadeiro conhecimento passa-lhes ao largo.
H.V. Considera a aprendizagem como um excesso de informação acumulada que não é, na maior parte dos casos, “processada” ?
A.B. Sim. A Internet é um exemplo: contém toneladas de informação e não sabemos o que fazer com ela. Existe um desafio mais encorajador: pensar porque é que somos muito bons a acumular informação, a acumular dinheiro mas menos bons no que respeita ao que podemos fazer com o conhecimento, com o dinheiro, etc.…É uma questão a que a Universidade não dá resposta. As pessoas só estudam durante um período muito curto das suas vidase o resto do tempo trabalham duramente. O auto-conhecimento e o conhecimento do mundo tornam-se muito limitados.
H.V. Neste livro ironiza a propósito daquilo a que chamamos “estatuto”, algo que muita gente procura como se equivalesse à felicidade. É uma crítica contundente.
A.B. Sim. Acho que é uma ingenuidade pensar que podemos ser felizes permanentemente. Quando nos reportamos à Idade Média, por exemplo, constatamos quea vida era miserável. As pessoas consolavam-se pensando na vida depois da morte. Hoje, vivemos num extremo oposto, numa sociedade muito optimista em que assuntos dolorosos como a morte, a doença, a idade, o divórcio, os dramas pessoais não são mencionados. No entanto, tudo isso faz parte da experiência humana. Torna-se bastante cruel chegar ao fim do dia e falar só da felicidade, quando ela não é uma realidade. Talvez não haja solução para muitos dos nossos problemas mas há “consolação”, uma palavra mais modesta mas que me agrada especialmente.
H.V. Propõe um mundo melhor, desmascarando certos mitos como o da “nobreza do trabalho”, uma “religião” que segundo diz foi introduzida pelos americanos e que tem sido muito aplicada nos dois últimos séculos?
A.B. Creio que o conhecimento pode ajudar a desmascarar os mitos e a compreender aquilo a que chamo a genealogia das ideias, o porquê, por exemplo, da nossa “adoração” pelo trabalho, o porquê do facto de, quando duas pessoas se encontram, perguntarem uma à outra, “ em que é que trabalha”, como se esse facto definisse um indivíduo. Por que razão não se pergunta “qual é a sua terra”? Por isso questiono-me: o que originou esta dinâmica, de onde vem este poder? É como a instituição do casamento. O que é? De onde veio?Para que serve? Quem é que a deseja? Qual a sua história? Não me refiro á História tradicional mas à história, ao serviço do presente. É uma conversa em aberto que, para mim, para a minha vida privada, se revela extremamente útil.
H.V. Propõe-se substituir um tipo de conhecimento, interior - como a clássica ida ao psicanalista - ou exterior - como o que se aprende directamente da televisão - por uma forma mais dinâmica de conhecimento?
A.B. Não sei. O meu livro é muito pessoal no sentido em que não creio que a religião possa ser uma resposta. Não existe uma solução permanente para o estado de ansiedade de que falo neste livro mas interessa-me compreendê-lo. Não forneço soluções – isso seria uma violação de intenções – mas tento “desvendar”. Há pessoas que me criticam por eu dar apenas sugestões, mas trata-se de uma questão dinâmica e instável, permanentemente em aberto.
H.V. No entanto, faz um diagnóstico dos males da nossa sociedade e aponta alguns “remédios” …
A.B. Sim. Mas trata-se de algo selectivo, quase uma brincadeira: muitos dos “conselhos” são paradoxais para os nossos tempos. Por exemplo, eu digo que devemos olhar a morte defrente. Uma das soluções mais simples para o estado de ansiedade é compreender quea vida é muito curta. À partida parece muito desagradável e triste. Na iconografia tradicional colocava-se um crânio em cima de uma mesa, obrigando as pessoas a pensarem ,” vou acabar assim” e isso não devia deprimir-nos mas sim ajudar a libertar-nos de problemas como “o que é que os outros pensam de nós”, “quando é que serei promovido”, etc. Os seres humanos são pequenos e frágeis. É um pensamento perturbador mas, ao mesmo tempo, muito simpático.
H.V. Porque constitui o reflexo da nossa humanidade?
A.B. Evidentemente. Este pensamento desapareceu porque vivemos em cidades, rodeados pelos média que nos dão a ideia de que somos importantes, de que este ou aquele é “muito” importante porque tem dinheiro ou visibilidade. Mas se pensarmos nos antigos egípcios, nos antigos romanos, nos grandes heróis e que deles só resta pó, isso ajuda-nos a relativizar tudo.
H.V. Será que o “estado de ansiedade” também está relacionado com a tão falada perda de fé?
A.B. É preciso questionar o conceito de fé. Estará ligado à religião? As religiões são muitas vezes fundadas na ideia de que o ser humano não é muito importante. Há sempre algo maior, que é Deus, algo fora de nós próprios. Em quase todas as sociedades se adora um Deus, um espírito, a natureza, um pedaço de madeira, o Santo Graal, qualquer coisa para lá do humano, algo mais forte, mais poderoso, mais misterioso. Tem tudo a ver com a ideia de reverência, que é o centro das religiões. Agora, reverenciamos outros seres humanos: os astronautas, os desportistas. Tudo isso leva, de novo, a um estado de ansiedade, uma vez que a maior parte das pessoas acham que “não estão à altura”. Na Grécia Antiga havia heróis e deuses que se divertiam e até se importunavam uns aos outros. E havia a ideia do destino e da sorte. Agora, já não acreditamos nisso. Se eu disser que escrevi um livro mau e que foi um azar, ninguém me leva a sério. Se alguém perde o emprego e diz que foi pouca sorte as pessoas pensam: “O que é que ele terá feito, de errado?” O mesmo se passa ao contrário: se alguém tem um negócio que lhe corre bem e diz que foi sorte as pessoas pensam: “ não foi sorte, ele trabalhou muito, tinha bons contactos, etc.”. Acreditamos que cada pessoa é inteiramente responsável pelo o que é e pelo o que lhe acontece. É evidente que, em certa medida, é verdade mas creio que é, também, muito mais complicado.
H.V. No entanto, essa ideia é recente, vem do século XVIII?
A.B. Sim, tem 200 anos. É bonito pensar num mundo flexível, em que as pessoas se reinventam, não interessando quem são os pais, ou o lugar de onde se vêm. Mas também pode ser uma ideia cruel e quando os políticos, da esquerda e da direita, afirmam querer construir uma sociedade em que cada pessoa pode tornar-se nisto e naquilo, a verdade é que sempre haverá hierarquias, com gente que manda e gente que obedece.Como dizer aos de baixo, na pirâmide, que só estão aí porque são estúpidos ou porque não têm a energia necessária? Muita gente acha que pode chegar um dia a ser como o Bill Gates. É muito pouco provável mas as pessoas sonham com isso.
H.V. Não será esse o preço a pagar pela liberdade individual e pelo sistema democrático?
A.B. Sim, mas o que se passa hoje em dia é que as pessoas estão muito sós face ao seu destino, com as suas histórias pessoais, o que as leva ao desespero, à depressão, aos suicídios, etc.
H.V. De onde nos vem, então, esta absoluta certezade que temos de ser belos, amados, importantes?
A.B. As crianças são amadas e por isso nós todos sabemos o que é ser-se muito especial,em determinada altura. Claro que existem crianças maltratadas mas a maior parte das pessoas tem um sentimento de omnipotência que lhe fica da infância.
H.V. As crianças são o centro das atenções mas crescem e deixam de ser o foco dessas mesmas preocupações e cuidados. Não será isso, também, uma causa da angústia?
A.B. Sim. As crianças são tratadas como bonecas e depois apercebem-se que os pais têm de trabalhar muito e que projectam nelas uma espécie de fantasia. Vejo jovens que possuem uma linguagem de auto-estima e que acham que tudo o que fazem é bom e bonito e, depois, chegam ao mercado de trabalho e são confrontados com uma realidade diferente. Esta atitude reflecte uma ausência de reflexão, face à realidade.
H.V. Acha que esta procura incessante de “Status” poderá ser uma forma de combate ao medo?
A.B. Em certa medida é verdade. Mas isso funciona em termos de instinto e não a nível psicológico.
H.V. Fala muito no conceito de auto-estima, de identidade. É o que primeiro se retira aos prisioneiros, ou a quem se quer humilhar ou destruir. Acha que essa ideia só se constrói com conhecimento?
A.B. Sim. Troça-se, muitas vezes, da ideia de auto-estima. Mas, no seu melhor, é uma afirmação de independência de pensamento. Falo de capacidade crítica, humanista, do conhecimento. É a base das lições de Sócrates. É parar e dizer, “espera um pouco, todaa gente diz que “isto” é normal mas pode não ser”. Foi o que aconteceu em relação ao feminismo, por exemplo: alguém que disse: “ talvez não seja normal que as mulheres sejam tratadas desta maneira”.
H.V. Para si, a ideia de “status” é, portanto, uma falácia?
A.B. Haverá sempre a ideia de “estatuto”. Por isso é que falo da meritocracia numa sociedade mais justa. É uma utopia pensar-se que todas as pessoas boas estão no topo e as más, não. O Bem e o Mal são muito complicados e já não vivemos numa era cristã que definia esses conceitos, baseados em “mistérios”, com toda a injustiça que, também, acarretavam.
H.V. A sua proposta tem a ver, portanto, com uma nova forma de perseguir a felicidade, baseada numa relação constante com o mundo e com os outros?
A.B. Como escritor, penso muitas vezes que os livros perderam o seu poder, através dos tempos. Um dia, quando for mais velho, quero começar uma Universidade a que chamarei a Universidade da Vida, onde se irá estudar… a sabedoria.
Publicado em revista ELLE portuguesa
A minha próxima COMUNIDADE de LEITORES na CULTURGEST Lisboa começa a 19 Setembro, 2013.
O tema é o seguinte: Em defesa da rebeldia
É necessária uma boa dose de coragem para alguém se rebelar, se insurgir, se revoltar, dentro do espaço da família, da sociedade, da comunidade. Mas será a rebeldia um estado físico e mental positivo que impele para a mudança, para a revelação do engenho e da criatividade, ou revelar-se-á como o ímpeto que leva à destruição, ao caos e ao aniquilamento? Rebeldes são aqueles que, frequentemente na juventude mas também ao longo da vida, se insurgem contra o que está pré-‑estabelecido, levando as suas ideias e convicções até às últimas consequências, tanto benéficas como maléficas. O rebelde é heroico como no caso de Atticus Finch, o advogado que ousa defender um negro no tenebroso Sul de Harper Lee. Por sua vez, Raskolnikov, o assassino do romance de Dostoiévski, tem a sua própria noção distorcida e perversa de rebeldia e o gangue de raparigas no livro de Carol Oates mostra, também, os estranhos e perigosos caminhos da marginalidade. Augie March (de Bellow) e Holden Caulfield (de Salinger), através das suas experiências e ritos de passagem, são o exemplo do impulso regenerador que traz consigo a experiência e o enriquecimento existencial. Finalmente, o Prometeu de Ésquilo, duramente castigado e representante do antiquíssimo desejo de desafiar as forças divinas, tem a sua contrapartida nos textos cristãos com a figura de Eva, a transgressora maior. Por tudo isto, será possível distinguir as “boas” das “más” rebeldias? Ou será o estatuto do rebelde o documento, a marca imprescindível, que leva à incontornável mudança?
19 de setembro
À Espera no Centeio, J.D. Salinger, Ed. Quetzal, 2011
17 de outubro
As Aventuras de Augie March, Saul Bellow, Ed. Quetzal, 2010
14 de novembro
Crime e Castigo, Fiodor Dostoiévski, Ed. Presença, 2001
28 de novembro
Mataram a Cotovia, Harper Lee, Ed. Relógio D’Água, 2012
12 de dezembro
Raposas de Fogo, Joyce Carol Oates, Ed. Casa das Letras, 2011
19 de dezembro
Prometeu Agrilhoado, Ésquilo, Edições 70, 2008
Às QUINTAS-FEIRAS
JACK KEROUAC - A GERAÇÃO BEAT
Em 1956, Jack Kerouac estava a atravessar uma das suas fases de depressão. Sem dinheiro, sem mulher e com“On The Road” (“Pela Estrada Fora”) por publicar, o escritor decidiu deixar Nova Iorque e partir em busca de um nirvana que ele ligava estreitamente à ideia de liberdade. Aceitou um lugar de vigilante de incêndios nas montanhas North Cascades e instalou-se no Desolation Peak, numa cabine que, desde a sua morte, se tornou um lugar de peregrinação.Passou 63 dias isolado “à procura de Deus”, tendo apenas como companhia a vista espectacular sobre as montanhas com os seus picos cobertos de neve e vales densos e vertiginosos. Kerouac, que era um verdadeiro citadino, veio para este lugar distante, espartano e rigoroso por indicação dos seus amigos, os poetas Gary Snyder e Philip Whalen que já tinham passado algum tempo numa outra cabine. Kerouac andava desesperado por escrever em paz e queria seguir o exemplo de Thoreau e de Emerson: viver em solidão com o mínimo para sobreviver, em estreita convivência com a Natureza, cortando todos os laços, despojando-se de tudo. Jack estava no auge do seu período budista e era fortemente influenciado pelo poeta chinês da dinastia Tang, Han Shan. Em Desolation Peak, leu a escrituras Prajnaparamita diariamente e coligiu material para os seus dois livros “The Dharma Bums” e “Desolation Angels”.
Hoje em dia é difícil passar tanto tempo isolado, mesmo nesse lugar longínquo. Visitantes do parque e principalmente admiradores de Kerouac arrastam-se até lá e deixam mensagens no “log book” do abrigo florestal. Mas quando Jack abandonou o local, depois de mais de dois meses sem ter visto vivalma, estava convencido de que a sua vida ia mudar e de que, apesar de estar já com 34 anos, ainda teria hipótese de escrever as suas obras-primas tal como Dostoiévsky, que ele admirava com exaltação.
De regresso à cidade, a vida retomou o seu curso. Em 1957, Grenwich Village em Nova Iorque era o centro de um mundo em transformação. Lugares como o bar “Johnny Romero” serviam de pouso a escritores e artistas que criavam uma atmosfera de boémia e cumplicidade. Também apareciam os “curiosos” para apreciarem de perto tão estranhas personagens e confirmar os rumores de que aí “era onde as raparigas brancas tinham encontros com rapazes negros”. Desde 1947, e num período que se estendeu até 1949, o apartamento de Gil Evans na West 55th Street foi o ponto de encontro de grandes músicos. Com eles, a partir deles, emanavam ideias postas em prática por nomes tão míticos como John Coltrane e Miles Davis. Dois dos grupos mais importantes, formados respectivamente em 1951 e 1952, o Modern Jazz Quartet e o quarteto de Gerry Mulligan (que lançou Chet Baker, por exemplo) foram o resultado dos encontros no apartamento de Evans. “A Love Supreme” e “Kind of Blue” os clássicos celestiais, respectivamente de Coltrane e Miles Davies, eram a expressão de uma procura apaixonada de algo transcendente, de uma bem-aventurança.O Jazz na sua versão “cool” tinha tomado conta das ruas enquanto a heroína “agarrava” a cultura beatnick.É curioso recordar que esta droga fora introduzida na América pela companhia farmacêutica Bayer e vendida como xarope para a tosse, tendo sido difundida livremente ao longo de vinte anos até aproximadamente o fim da primeira Grande Guerra. Ao tornar-se ilegal, a sua distribuição ficou a cargo de mafiosos, dos quais o mais famoso foi Lucky Luciano. Quando este foi finalmente deportado para a Sicília, nos finais dos anos trinta, a heroína era já a droga de eleição entre músicos e artistas.
No pós Segunda Grande Guerra, a vida levava outros rumos. Todos queriam esquecer o conflito, lançando-se numa busca de algo que parecia para sempre inatingível mas impossível de evitar como objectivo.A arte fazia-se na rua, nos bares, nos apartamentos de amigos e cúmplices. Era uma existência livre de restrições morais que, até então, tinham pautado a sociedade americana. Depois de todos os horrores, era difícil acreditar na existência do paraíso para além das drogas, do álcool ou do esquecimento, que a vagabundagem conferia.
Há quem recorde Kerouac, exactamente por essa altura, a pagar bebidas aos amigos nesses mesmos lugares, tirando dinheiro à mãos cheias de um cinto porta-notas, onde guardava o total dos 1000 dólares que a Viking Press lhe entregara como adiantamento pelo seu famoso “On the Road”. Esta história que ele tinha levado seis penosos anos a completar e que passara outro tanto tempo nas gavetas, rebentou como uma bomba no meio literário, com a crítica entusiástica do The New York Times na qual “On the Road” era descrito como sendo “uma autêntica obra de arte” , “uma obra mestra”, o símbolo da “beat generation” em contraponto com a “lost generation” dos anos vinte e de “The Sun Also Rises”de Hemingway. O lançamento de “On the Road” foi um dos grandes golpes publicitários da época, engendrado por um grupo de pessoas que conhecia bem a juventude da época e sabia que esta estava sedenta de algo com que se identificasse , afastando-se definitivamente do puritanismo e do idealizado “amerian way of life” que florescera durante e logo após a Segunda Grande Guerra. Não era impunemente que, na Europa,o movimento existencialista e as modas que lhe estavam circunscritas se desenvolviam exponencialmente. Uma nova geração sem raízes emergia dos escombros de uma sociedade desfeita, desejosa de cortar amarras, interessada em fumar marijuana e guiar até à Califórnia, à procura de bons momentos. Aproximavam-se os anos sessenta e a revolução sexual, o Flower Power e as manifestações pacifistas perfilavam-se no horizonte.
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Jackson Pollock morreu em Agosto, o mês de todos os desastres.
No verão de 1956, a 11 de Agosto, um acontecimento dramático marcou indelevelmente o mundo da cultura: um potente Oldsmobile descapotável despistou-se a alta velocidade numa curva da estrada, a caminho de Springs, Long Island. Ao volante ia Jackson Pollock,o mais celebrado artista do momento, acompanhado da sua amante Ruth Kligmane de uma amiga, Edith Metzger. Regressavam de uma noitada de deambulações por bares e de discussões violentas. Pollock, separado da pintora Lee Krasner, com quem se casara em 1944, tinha 44 anos e encontrava-se no auge do seu processo criativo. No entanto, o seu comportamento suicidário e desesperado levava-o a afundar-se cada vez mais na angústia e no álcool.
“Jack the Driper” (como era conhecido) nascera em 1912, em Cody, Wyoming, de uma família de pioneiros da velha guarda, sólidos, resistentes e duros. Nas suas veias corria sangue irlandês, escocês e alemão. As terras onde se fixaram os seus pais, Stella e Roy, estavam ainda maioritariamente ocupadas por índios e celebrizavam-se mundo fora, graças ao “show” de um senhor que dava pelo nome de Buffalo Bill Cody.
A infância de Jack e dos seus quatro irmãos foi marcada pela saída de casa do seu melancólico e alcoólico pai, quando ele tinha nove anos, e pela inquietação de Stella, uma mulher obstinada e forte, que empurrou a família para mudanças consecutivas entre o Arizona e a Califórnia. Jackson teve a oportunidade de estudar Arte e, em 1930, já em Nova Iorque, ingressou na Arts Student League. Influenciado, numa primeira fase da sua carreira artística ,pelo Surrealismo e pela obra do seu mentor Thomas Art Benton, cedo começou a libertar-se e a procurar alternativas. A sua primeira exposição individual, em 1943, na Galeria de Peggy Gugenheim – que se tornou uma das suas grandes coleccionadoras – consolidou-lhe a fama. Mas foi só em 1947 que o seu estilo se transformou radicalmente. Revolucionando o conceito da composição tradicional, assumiu um estilo de pintura no qual, propositadamente, evitava a identificação de um centro, ou a correlação entre partes. O facto de trabalhar as telas no chão, de usar paus, facas e objectos de pedreiro para além de pincéis – que nunca tocavam a superfície da tela – de utilizar vidro moído, areia como os índios americanos, e outros materiais não convencionais, contribuiu para abrir caminho ao Expressionismo Abstracto, uma corrente que englobou artistas como De Kooning, Lee Krasner, Mark Rothko, Philippe Guston, Franz Kline, Barnett Newman, Clifford Still e Helen Frankenthaler. O termo Expressionismo Abstracto fora primeiro cunhado por Robert Coates, em Março de 1936, numa edição do New Yorker e adquiriu um estatuto permanente graças principalmente aos críticos Harold Rosenberg e Clement Greenberg que também “inventaram” os termos “Action Painting” e “American Style”.
A cena artística fervilhava mas foi Pollock quem se captava todas as atenções. A sua personalidade complexa era marcada por uma terrível timidez natural – era dado a longos silêncios e ostentava um ar de constante sofrimento – aliada a uma postura de cowboy machista muito a la Hemingway. De acordo com os seus biógrafos, por volta dos trinta anos estabelecera a sua reputação como um tipo que “bebia, corria riscos, guiava como um louco, dizia palavrões, andava à pancada, fornicava a torto e a direito e não pedia desculpas”. (“Jackson Pollock. An American Saga”, Steven Naifeh e Gregory White Smith ).
O seu brutal desaparecimento resultaria numa lenda tão marcante comoa de James Dean, que morrera no despiste do seu Porsche, em 1955.
"Lolita ou A Confissão de um Viúvo de Raça Branca", de Vladimir Nabokov, conhece agora uma reedição em português com uma excelente tradução de Margarida Vale de Gato que também assina um interessantíssimo Posfácio.
Passei muito tempo da minha vida às voltas com este romance e incluí-o várias vezes nas listas das Comunidades de Leitores. Dediquei um capítulo a Lolita no meu livro "A Infância é um Território Desconhecido", (Ed. Quetzal, Lisboa) e tenho andado a escrever sobre Lolita e a sua "antípoda", Daisy Miller.
Aliás, Nabokov e Henry James ocupam uma parte substancial do meu tempo de leitura.
Há uns anos, numa conferência em Cascais sobre literatura inglesa e americana – convidada, ainda, pelo meu muito saudoso amigo Eduardo Prado Coelho – falei sobre estas personagens, como elas são muito mais do que instrumentos nas mãos dos seus criadores, ganhando vida própria na nossa imaginação e na nossa vivência.
Consta do texto, publicado em Acta, o seguinte:
"Este “avanço” em relação às características de uma heroína – de Catherine (Sloper, a heroína de "Washington Square" de Henry James ) para Isabel Archer (heroína de "The Portrait of a Lady" do mesmo James) – é uma ideia que irá vingar na Literatura. Mais do que a lânguida Daisy ( Buchanan ) é Jordan Baker, a desportista, jovem e dinâmica, ainda que desonesta (no “Great Gatsby”) que preconiza, tal como Isabel Archer a ideia da América como uma pátria construtora de personalidades cheias de energia e vitalizadoras para quem, no velho continente (Europa), procura uma espécie de elixir da juventude, de excitante recomeço. Este conceito de beleza ligado à energia juvenil, à sexualidade e à criatividade tem perdurado, embora o romance contemporâneo se dedique com mais incidência à perda de inocência cada vez mais cedo e à crueldade dos jovens.
Essa América extremamente jovem – e também imatura – “sexy”, caprichosa e fascinante está perfeitamente personificada na ninfeta Lolita, criação do famoso escritor russo-americano, Vladimir Nabokov. A menina, que enfeitiça o europeu Humbert Humbert até ao crime, é por ele possuída – literal e metaforicamente – como umaforma de “agarrar” ( violando, tomando como presa) uma projecção da infânciae de darlargas a uma sinistra nostalgia da belezae juventudeque o arrasta para as maiores perfídias. Essa “luz” incandescente (em torno da qual as mariposas queimam as suas asas na linguagem fitzgeraldeana ) é aquela que o próprio Fitzgerald, Hemingway , James e Wharton levaram para a Europa. Nabokov fez o percurso contrário, naturalmente, e imprimiu uma nova dinâmica – alguns chamar-lhe-ão perversa – ao “glamour” ofuscante que o precedera, juntando a marca indelével da imagem – o cinema na literatura –e a nostalgia deum outro paraíso, em que liberdade é sinónimo de fora-da-lei, na viagem pela América dos dois amantes amaldiçoados."
Imagens: Uma da capa e outra do filme do mesmo nome de Stanley Kubrick, 1962
Impunidade - A Maré Negra
Antes de 1974, quando viajava - e nesse tempo o passaporte era usado em todo o lado, mesmo na Europa - sentia os olhares de quem não me conhecia pousados em mim, com um misto de desprezo e de comiseração. Por vezes ouvia um ou outro comentário menos simpático. Era cidadã de um País ligado à imagem de Salazar, isto é, à noção de ditadura que, por sua vez, estava associada á pobreza mental física e espiritual, ao atraso económico, cultural e civilizacional, ao desrespeito pelos direitos humanos e à ausência de liberdade. Apesar de nunca ter sido dada a nacionalismos - muito pelo contrário - aborrecia-me ser avaliada à luz da óbvia decadência do meu País.
Passeava pelo mundo de olhos brilhantes e desassossegados, sentava-me nos cafés, escrevia postais para a minha mãe, respirava o ar de outras paragens, exaltava-me com a beleza, estudava, amava quem me apetecia, mas não conseguia apagar o estigma de ser portuguesa, a sensação de, no fim da deambulação feliz, ter de regressar a um lugar insípido, triste, totalmente desinteressante e nada, mesmo nada, estimulante. O tempo passou, experimentei a alegria e o alívio de ver passar essa época, mas a História deixa profundas marcas. Tal como um alemão ou um austríaco, por muito humanos, sensíveis, inteligentes e carinhosos que sejam, não podem fazer desaparecer o nazismo, Hitler e outras figuras de sinistra memória - embora tenham, para contrabalançar, Goethe, Schiller, Novalis, Hölderlin, etc. - tão pouco posso apagar a vivência dessa época e o estigma de ideologias tão nefastas que ensombraram esta terra, durante tanto tempo. É claro que a exaltação desse dia claro que foi 25 de Abril de 1974 se deve a muito poucos; mas o seu papel libertador foi cumprido e serviu de catarse para muitos, abrindo caminho a infinitas possibilidades de melhoria e transformação.
Este preâmbulo, que nada tem de nostálgico, serve o propósito de acompanhar certas cogitações que suponho estarem também a fermentar na cabeça de muita gente: é que, neste ano da graça de 2013, já não é possível albergar dúvidas quanto ao rumo das nossas vidas que aponta, de forma insidiosa, para um retrocesso. Atenção: não estou a afirmar que o status quo actual se assemelha totalmente ao salazarismo ou ao nazismo. Não chegámos tão baixo. Mas a verdade é que a situação deste País é tudo menos recomendável.
Tomo como centro da minha reflexão o "caso BPN". É uma história de corrupção, ganância e crimes que define este País, marca toda a gente. Porquê? Porque, para além das óbvias perdas financeiras para algumas pessoas, para além do encargo que se transformou para todos nós - nós, quero dizer, pessoas como eu que nunca se meteram em especulação financeira e que estão a pagar as asneiras e malfeitorias de quem prevaricou - há outros aspectos que, suponho, vale a pena mencionar: o primeiro é a flagrante falha do sistema judicial. E um País que não tem uma Justiça firme e escorreita, à altura dos grandes desafios, é terra sem liberdade, sem "democracia". O segundo - consequência do primeiro - é este novo mundo de total impunidade, onde bandidos e gente supostamente "decente" convivem com total desprendimento. O "caso BPN/SLN" é uma mancha nociva, purulenta e poluente que alastra como um cancro e se fixa em todos os órgãos daquilo a que chamamos Estado - e não só. Nem tudo - mas muito - tem a ver com o BPN mas o sentimento instalado é o de ignomínia. Se há pessoas que cometem crimes e nem sequer são beliscadas é caso para dizer que o terreno está aberto a todo o tipo de malfeitorias, é espaço de caça para os supostamente "mais espertos", sem leis nem ética. Uma ministra que mente numa comissão de inquérito, um Presidente da República que destabiliza um País e muda de rumo como e quando lhe apetece - e que ganhou com operações do dito BPN - um primeiro-ministro que não tem uma única ideia na cabeça e sofre de uma tremenda amnésia, ministros que andam tão entretidos a "jogar" à política que nem se ralam com os danos colaterais que provocam, secretários de estado sob suspeita, banqueiros que vão à televisão dizer como as pessoas devem viver, figuras do jet-set que "brincam aos pobrezinhos" e o dizem alto e bom som - a história é estúpida demais mas a forma leviana como esta gente se expressa dá que pensar - e, principalmente o total desrespeito pela Constituição ( os pareceres do Tribunal Constitucional são atirados para o lixo com um revolteio desprendido e uma "justificação" tíbia) são apenas algumas das faces desta falta de pudor que parecem ter chegado a todo o lado, infiltrando-se no tecido social, destruindo o equilíbrio, como se justiça e injustiça, honra e crime se tivessem fundido num só monstro, numa hidra de inúmeras cabeças.
Creio que, no dia em que houver um castigo exemplar para os intervenientes responsáveis pela burla do BPN, o País beneficiará muito. Suponho que deveria ser possível a Justiça estabelecer um tempo de provisão cautelar que inibisse os altos quadros, os que sentaram os traseiros nos cadeirões das várias administrações ligadas a este caso, a exercerem quaisquer funções durante um tempo determinado - sim, Rui Machete nunca poderia ter ido para o Governo até se "limpar" - ou não - desta questão. Não só a Justiça teria de acelerar o passo como, também, os inocentes ficariam ilibados. Mas como está o País, com tanta gente "enlameada" com esta história funesta, continuamos imersos numa "maré negra" de corrupção, desconfiança e má fé que, de uma forma abjecta, se tornou prática comum e familiar por parte de cidadãos e cidadãs que deveriam estar a servir o Estado e a colocarem-se, pela sua correcção, fora do alcance da desconfiança e da, por vezes, óbvia e reconhecida mancha.
Não advogo qualquer "caça às bruxas" e não creio que o dinheiro seja algo "mau", pernicioso. Pelo contrário, acho, por experiência própria, que o dinheiro traz muita felicidade. É com dinheiro que podemos trabalhar com alegria, amar sem angústia, apreciar o Belo, cultivarmo-nos e tratar de nós. É com dinheiro que um País tem um serviço de saúde e uma educação para todos, que pode desenvolver o seu potencial de recursos humanos e naturais. É com dinheiro que estamos mais próximos uns dos outros - ou não - é com dinheiro que as comunicações se fazem e se constroem bens e estruturas sólidas. É com dinheiro que se alicerça a Cultura, algo que deveria ser tão essencial como a alimentação. ( Quando falo em Cultura estou a pensá-la a vários níveis, obviamente).
O que não é possível é a continuação deste estado de coisas. Não quero voltar a sentir-me estranha na minha própria "casa" devido ás más companhias. Não quero acordar todas as manhãs a pensar que a única coisa que tenho a fazer para me sentir melhor, mais livre e menos contaminada é trocar de nacionalidade e livrar-me deste sentimento de desprezo e de vergonha.
1 Agosto, 2013