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por Oldfox, em 16.09.13

Edição portuguesa de HENRIQUE IV de William Shakespeare

"Estou velho, estou velho"

Falstaff em Henrique IV

Acto II, Cena 4, Linha 1562


Se há alguma coisa que me dá felicidade – para além do óbvio – é a leitura do velho William Shakespeare. É melhor do que qualquer droga – somos atirados para um mundo vasto e tão impetuoso que mal podemos parar para respirar – e mais interessante do que qualquer outra actividade. As personagens "vivem" em todo o seu esplendor junto de nós, tão perto que lhes sentimos o bafo doce ou acre, sulfuroso ou perfumado. Não há emoção, sentimento, pulsão, desvario que lhes escape, dos mais nobres aos mais mesquinhos. Hegel observou que as personagens de Shakespeare são " livres artistas de si próprios" e essa dimensão confere-lhes um atractivo e uma sedução avassaladoras. Não há gente perfeita, heróis impolutos, virgens imaculadas, intenções óbvias. William Shakespeare, o génio laico, o criador infindável, também nos insere na História, esse longo caudal, esse magma de onde todos emergimos. As leituras são viagens interplanetárias porque cada peça revela o território de um cosmos. E quando surge uma colecção como esta, fico espantada por não ver páginas de jornais e revistas, bem como longos minutos televisivos a dedicarem-lhe todo o tempo e a análise que merece.

Trata-se da colecção "Projecto Shakespeare" que resulta de um protocolo estabelecido entre os membros do grupo de investigação Shakespeare e o Cânone Inglês, do CETAPS – Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies (pólo da Faculdade de Letras da Universidade do Porto), e a editora Relógio D' Água e tem como objectivo a publicação da tradução integral da obra do bardo inglês. E, para começar, aqui fica a indicação da tradução da peça histórica HENRIQUE IV – 1ª e 2ª partes – pelo professor Gualter Cunha que também escreve um valioso prefácio.

"Henrique IV" supõe-se que foi escrita (1ª parte) cerca de 1597 – a 2ª parte terá ficado pronta cerca de 1599 – e cobre o tempo histórico das lutas pelo poder entre 1402 e 1403. Foi sempre uma peça extremamente popular e cuidadosamente estudada – uma nota especial para Samuel Johnson.  Nela surgem dois dos emblemáticos seres do universo shakespereano, o " príncipe Hal (Henry)" – futuro rei Henrique V – e a grandiosa e complexa figura de Falstaff – esse nobre vaidoso e obeso, cobarde e gabarolas que arrasta o príncipe para as suas eternas complicações – e que, só por si, "preenche" muito satisfatoriamente o nosso imaginário. Mas é preciso ler com atenção esta magnífica história onde afectos e companheirismo se confundem e se cruzam com os embates brutais pelo poder.

Esta edição é de Julho, 2013, Lisboa.

 

Falstaff e o Príncipe Hal

 

 

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publicado às 17:45


por Oldfox, em 13.09.13

Paul Bowles

 
Fotografia de Paul Bowles por Daniel Blaufuks, 1991

 

Paul Bowles terá sido um dos poucos (e últimos) artistas verdadeiramente livres. É difícil, nestes nossos “tempos sombrios”, imaginar alguém – ainda para mais, um americano – que pudesse ser tão brilhante e simultaneamente tão independente, conseguindo desligar-se de preconceitos, religiões, dogmas, políticas e credos. Desde muito novo que, deliberadamente, se foi desfazendo de constrangimentos - como uma cobra larga as suas sucessivas peles – tornando-se a cada passo mais sábio, mais cosmopolita e mais singular. Numa altura em que a maior parte das pessoas deseja ser como outra qualquer, o livro “Memórias de um Nómada”, (Ed. Assírio & Alvim, Lisboa, 2007) a sua autobiografia, mostra que há quem prefira traçar o seu próprio caminho e fazer escolhas muito pessoais. Bowles não se assemelhava fosse a quem fosse e manteve sempre uma independência de corpo e espírito que assombra e choca aqueles que já só conhecem este nosso mundo de desconfianças, conspirações e medos. Paul soube desenvolver as suas capacidades criativas, viveu intensamente e encontrou, na devida altura, toda a gente que valeria a pena ser conhecida, na segunda metade do século XX. Nesse aspecto, este livro poderá ser lido como um extraordinário catálogo de celebridades mas a forma como o autor aborda as diferentes formas de relacionamento com essas mesmas personagens - que fazem parte dos grandes mitos culturais, como Salvador Dali, Orson Welles, Peggy Guggenheim, Marcel Duchamp e muitos, muitos, outros é, no mínimo, absurdamente divertida e descomprometida. Foram pessoas com quem Bowles trabalhou, tomava copos, partilhava casas, procurava nas suas múltiplas viagens, viagens essas cada vez mais perigosas através de desertos e vulcões, com doenças e armadilhas terríveis que ele superava - muitas vezes com a mulher, Jane - com a destreza de um Indiana Jones. Foi esta personagem extraordinária que o cinema, pela mão de Bernardo Bertolucci, revelou ao mundo, em 1991, com a adaptação do perturbante romance "The Sheltering Sky", ingenuamente traduzido para português como "Chá no Deserto". Antes, Bowles era conhecido apenas por alguns “iniciados” que seguiam com atenção a sua vida nómada, as suas extravagâncias – comprou uma ilha, (a Taprobana de “Os Lusíadas”), instalou-se em Marrocos, era bissexual e amava o deserto e as regiões inóspitas – e o seu conhecimento profundo da cultura árabe. Bowles nasceu em Nova Iorque, Queens, em 1910 e morreu (1999) em Tânger, Marrocos, cidade onde viveu quase sessenta anos da sua existência. O pai era um artista falhado que acabou por se dedicar à odontologia. A sua infância foi solitária e muito produtiva. Na sua condição de filho único, inserido numa família “burguesa”, a educação que teve – se fizermos fé no que o próprio conta em “Memórias de Um Nómada” – oscilava entre a permissividade da mãe – que lhe lia Poe, Fenimmore Cooper e Nathaniel Hawthorne - e a severidade do pai, entre a super protecção e a crueldade. Na autobiografia, Bowles não esconde os seus sentimentos em relação aos progenitores de quem se afastou sempre, o mais cedo e o mais longe que conseguiu. Se, no seu relato, sempre em tom descontraído e por vezes desdenhoso, a mãe é retratada com bonomia e suavidade, o pai é tratado com a aspereza própria de um filho rebelde. Bowles não se esquece de relatar o facto de ter atirado uma faca ao pai num momento de maior tensão. (Nessa altura já era um adolescente “problemático”.) Mas foi graças ao fonógrafo comprado pelo pai que desenvolveu o gosto pela música a partir dos oito anos, altura em que começou a receber lições. Pelo o que conta da infância, a sua curiosidade era infinita e a sua energia inesgotável. Desenhava mapas sem parar, escrevia diários imaginários, imprimia jornais, redigia poemas e fazia, por sua conta e risco, vastas pesquisas em praticamente todas as áreas, tentando aprender tudo o que podia. Mais uma vez graças à sua situação de filho único e com o bónus de ter pais neuróticos, aprendeu naturalmente a apreciar a solidão e a torná-la produtiva. Cresceu num mundo habitado por adultos e cada membro da sua família era observado através do seu olhar muito crítico e perspicaz: tia Emma era morfinómana, a tia Mary uma acólita da célebre Madame Blavatsky, a fundadora do movimento Teosófico, o maior amigo do pai chamava-se Walter Benjamin – não o W.B. - .e por aí fora. Aos dezassete anos viu o seu primeiro poema publicado na "transition", uma revista literária com base em Paris e para a qual escreveram Joyce, Djuna Barnes, Gertrud Stein, Paul Éluard, entre muitos outros. Bowles, com a sua segurança e desprendimento tinha-lhes mandado a peça e eles tinham-na aceite sem discussão. Era um tempo em que as publicações culturais apareciam de um dia para o outro, um tempo em que se viajava à boleia e em barcos de carga. Aliás, foi esse o meio de transporte utilizado pelo autor, ao longo da vida – ficou farto do avião nas suas aventuras na América do Sul em que aterrava no meio do mato – e a forma como chegou pela primeira vez à Europa, no seu primeiro ano de Universidade. Em Paris, conheceu toda a gente digna de se conhecer, principalmente através de Gertrude Stein que, com Alice B. Toklas, orquestrava a vida e a obra de praticamente todos os que passavam pelo seu salão. Ela tomou o loiro e bem vestido jovem sob a sua protecção – chamava-lhe Freddy - e foi ela que o incitou a compor, a escrever e o mandou com Aaron Copland para Marrocos. Paul nunca pensou que essa primeira visita, em 1931, se tornaria, mais tarde, numa permanência de décadas. Foi a Argélia e Marrocos várias vezes, e o relato das suas experiências na autobiografia é tão hilariante como surpreendente. É curioso o contraste “descontraído” e directo deste relato com o tom dramático, catastrófico e carregado de angustia existencial da prosa de “O Céu que nos Protege” ( ed. Assírio & Alvim, Lisboa, 2004) que, de qualquer forma, tem uma base biográfica. Bowles foi um viajante infatigável – daí o título da sua autobiografia – e antes da IIª Grande Guerra percorreu a Europa, enquanto aprendia alemão em Berlim, cidade onde desenvolveu uma amizade com Isherwood, o que levou este último a dar à sua heroína, Sally, o sobrenome de Bowles. Sem grande esforço tornou-se fluente em francês em Paris, em árabe em Tânger e em espanhol, em Espanha. Bowles também visitou longamente a América do Sul e traduziu do espanhol o escritor guatemalteco Rodrigo Rey Rosa que se tornou o seu herdeiro literário. Paul Bowles começou por ser poeta e, principalmente, compositor – afirmou que compunha enquanto dormia - tendo-se distinguido na escrita de peças para ballet, teatro e cinema. Musicou textos de Cocteau e de Gertrude Stein, entre outros - o que não deve ter sido nada fácil - estudou com Aaron Copland, viajou e, numa das suas estadas em Nova Iorque, em 1937, conheceu no Plazza Hotel uma jovem escritora extravagante que coxeava, frequentava bares de lésbicas e bebia muito, chamada Jane Auer. Voltaram a encontrar-se em casa do poeta e.e.cummings e seguiram para Harlem para fumarem erva. Casaram-se um ano depois. Os primeiros anos de casados foram os mais produtivos para ambos,em termos criativos. Paul compôs inúmeras peças e tornou-se famoso. Só para dar uma ideia, em 1943, no Museu de Arte Moderna de N.Y. apresentou uma zarzuela – T”he Wind Remains “ – cujo libretto era uma adaptação sua de um texto de Garcia Lorca, conduzido por Leonard Bernstein e com coreografia de Merce Cunningham. Os anos da América foram frenéticos, sempre com trabalho, mudanças de casa, vida social intensa e viagens. Com a inquietação de um verdadeiro “nómada”, Paul, secundado por Jane, não se contentava com Nova Iorque. De novo por sugestão de Gertrude Stein ,que dirigia as operações a partir de Paris, Paul e Jane acabaram por se instalar em Marrocos. Paul decidiu abandonar a música pela escrita, fosse para competir com Jane ou, mais provavelmente, porque estava farto de ir a Nova Iorque – cidade pela qual dizia ter um certo desdém – por causa dos concertos. Em Marrocos deslocou-se por todo o lado, embrenhando-se no deserto, visitando lugares interditos e experimentando a fundo tudo o que lhe era oferecido – o exotismo dos bordéis, as doenças, as lutas entre mercenários e separatistas, a desintegração psicológica, a música dos contos, as práticas de magia, etc. Entretanto, Jane publicava “Duas Senhoras Bem Comportadas” com assinalável sucesso - e algumas críticas assanhadas, como a de Anaïs Nin. Corria o ano de 1947. Paul com o seu impecável ar anglo-saxónico e a tresloucada judia ruiva tinham muito em comum: ambos desejavam explorar o que Tânger, uma cidade exótica, tinha para lhes oferecer. Com entusiasmo e um sentido de auto destruição invejável lançaram-se na busca de os limites do abuso sexual (mas não um com o outro), das drogas, do álcool, da literatura. Paul publicou “O Céu que nos Protege” em 1949, o seu primeiro grande livro, tornando-se um ícone, a figura venerada do andarilho, do exilado, do marginal. “O Céu que nos Protege” é a história desapiedada e feroz de dois amantes que teimam em não se entender, levando até ao limite as consequências dos seus erros e desvarios. O mito do casal maldito, vivendo à margem da sociedade ocidental, atraído por um abismo profundo de sensações e vícios, apaixonado pelo deserto e pelos seus feitiços e ratoeiras surge na pele de Kit e Port, compondo um drama que espelha o relacionamento de Paul com Jane, duas pessoas muito especiais que quiseram viver, de uma forma extrema e deliberada, o contrário desse “sonho americano” do pós-guerra que eles desprezavam e ao qual, um dia, viraram definitivamente, as costas. Foi em “O Céu que Nos Protege” que Paul tratou de revelar a sua viagem interior alienatória e a estranha relação com Jane. Esta, que entretanto se apaixonara por Cherifa, uma jovem marroquina por quem teve de pagar um dote considerável, mergulhava cada vez com mais intensidade no kif e na bebida. Ainda conseguiu escrever mais um livro “A Stick of Green Candy” - a sua obra -prima é o conto "Camp Cataract" - mas os excessos impediam-na de trabalhar, enquanto Paul se dedicava à recolha de música árabe, mantinha o seu bordel de rapazinhos, escrevia, traduzia o poeta Mohammed Mrabet e recebia visitas regulares de artistas e escritores que peregrinavam para se encontrarem com ele. Truman Capote, Tenesse Williams, Cecil Beaton foram alguns dos que participaram no desregramento de longas noites de orgias sexuais, regadas a champanhe. Embora Bowles rejeitasse a ligação com a “geração beat”, a partir dos anos cinquenta, autores como Jack Kerouac e Allen Gisberg visitaram-no em Tânger e colheram aí fortes influências. William Burroughs aproveitou uma longa e alucinante estada para escrever a sua obra mais famosa “The Naked Lunch” e Gore Vidal foi uma visita habitual. A personalidade de Paul atraía gente de todo o mundo, uma vez que era considerado uma espécie de guru. Em 1957, com apenas 40 anos, Jane sofreu um acidente vascular cerebral – correram rumores que Cherifa a tinha envenenado e Paul escreveu que Cherifa era perigosa, que andava sempre com lâminas com as quais ameaçava castrar qualquer homem que se aproximasse de Jane – e foi primeiro para Nova Iorque e depois internada numa clínica, em Málaga, onde acabou por morrer, em 1973. Paul abandonou praticamente a ficção desde que Jane saiu de cena. Em 1972 publicou a sua autobiografia e só voltou a escrever um romance “Too Far From Home”, em 1992, porque foi desafiado pelo pintor Miquel Barceló que ilustrou a primeira edição com aguarelas. Ainda em 1994, Jeffrey Miller, autor de uma biografia de Bowles editou e publicou cartas seleccionadas que reuniu em “In Touch”. Cinco anos mais tarde Paul morria no hospital italiano de Tânger. A figura que “abriu a porta à delinquência literária”, de acordo com um dos seus críticos, foi uma espécie de Rimbaud que não desistiu do seu sonho envolto nos pesadelos das drogas, da alienação e de uma liberdade quase insustentável, feita de tumulto e de um grande desprendimento. Bowles conseguiu sempre viver à margem, mantendo, no entanto, uma calma e equilíbrio invejáveis. Tinha alma de vagabundo mas vestia-se e agia como um "gentleman". Era um artista com uma produtividade espantosa mas tinha uma atitude muito desprendida em relação ao sucesso. Conseguiu passar na vida sem nunca se adaptar ou conformar com os ditames das instituições. Sem grande empenho e decididamente sem espalhafato, passou ao largo de Deus, de qualquer Pátria ou autoridade. A família, o casamento, as amizades, a arte e os costumes foram por ele encarados de uma forma totalmente singular. O fotógrafo português Daniel Blaufuks que , com Bowles publicou em 1991 "My Tangier", captou na perfeição esta espécie de aristocracia de espírito que sempre o caracterizou, a sua calma perante a velhice e a morte, a curiosidade intensa e generosidade sincera como olhou, sentiu e experimentou tudo o que o universo teve para lhe oferecer.

 

Em Tânger com Jane e Truman Capote e Jane Bowles com Charifa

 

 

 

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publicado às 20:57


por Oldfox, em 09.09.13

J.D. Salinger: modo de usar

A comoção com que tem sido recebida a biografia de J.D. Salinger - "Salinger," escrita por David Shields e Shane Salerno - e a perturbadora promessa de edições de inéditos a partir de 2015, vem mesmo a propósito da re-leitura de "À Espera no Centeio", primeira obra do novo ciclo da minha Comunidade de Leitores na Culturgest em Lisboa. (19 Setembro, 2013, às 18:30, inscrições na www.culturgest.pt ).

Aproveito para recuperar um texto meu, publicado no Ípsilon - Jornal Público, Lisboa - sobre esta mesma obra: 

 

J.D. Salinger. Definitivamente fora deste mundo

 

Jerome David Salinger, o escritor recluso e anti-social, contista e autor de “À Procura no Centeio” (1951), romance iniciático e autobiográfico, morreu com 91 anos a 27 de Janeiro último (2010). Apesar do cerco que os jornalistas, estudiosos ou simples curiosos lhe fizeram durante décadas, nunca abdicou do seu “direito de não ser famoso”. O mistério que rodeou a sua vida prestou-se a grandes especulações: para uns era uma espécie de Tolstói do século XX, um eremita excêntrico que terá deixado uma obra vasta e (ainda) desconhecida; para outros foi um homem doente, psicótico e bloqueado intelectual e literariamente. Uma coisa é certa: todo o “corpus” da sua obra conhecida é simplesmente genial. Falta saber se os seus inúmeros admiradores terão a sorte de, em breve, virem a descobrir o que ele não desejou que o mundo conhecesse.

 

*****

Ainda hoje, certos visitantes de Manhattan procuram o bar do Hotel Seton para tomarem uma bebida, e o Edmont Hotel ou o Clube de Jazz do Ernie em Greenwich Village para aventuras mais excitantes ou, ainda, perguntam para onde foram os patos do lago ao sul de Central Parque, seguindo um roteiro que retraça os passos de Holden Caulfield, o herói de dezasseis anos de “À Procura no Centeio”. Enquanto cruzam Manhattan em velhos e mal cheirosos táxis, recordam o seu olhar excitado quando regressa à cidade e desembarca na Penn Station, se dirige para uma cabine telefónica – sem saber para quem ligar – e se lança numa delirante travessia da cidade palpitante, trepidante e tão misteriosa como um parque de diversões nocturno. Expulso do colégio por fraco desempenho académico, este herdeiro directo de Huckleberry Finn, este Stephen Dedalus adolescente, com a sua voz ininterrupta, caustica, zombeteira e trocista que não poupa ninguém – nem ele próprio – tornou-se um símbolo do rapaz “cool”, independente, audaz e divertido, que desconfia dos adultos e tenta encontrar-se a si mesmo, embora a solidão, a alienação e a angústia acabem por levar a melhor. ( “Alguma vez te sentiste farta de tudo?” pergunta Caulfield a Sally, uma das miúdas que ele persegue incessantemente sem grandes resultados práticos em termos de façanhas eróticas).     

O autor deste livro de culto, miraculosamente conservado em estado de graça até aos nossos dias, nasceu em Nova Iorque a 1 de Janeiro de 1919 de pai judeu e mãe de ascendência escocesa e irlandesa. À medida que os negócios de Sol Salinger prosperavam a família mudou-se do Harlem para a Rua 82  e mais tarde para um confortável apartamento Upper East Side, onde o jovem Sonny, como era conhecido na altura, e a sua irmã Doris cresceram. Salinger foi um aluno medíocre e, tal como Caulfield, “pensou em ir para Oeste” mas acabou por entrar para a Academia Militar de Valley Forge, modelo para a escola de Holden, a Pencey Prep, e onde, tal como o seu herói, foi monitor de esgrima e editor do jornal da escola, Crossed Swords. Mais tarde, a passagem pela New York University não lhe provocou entusiasmo nem tão pouco apreciou o esforço que o pai fez para o integrar nos negócios da família, nem mesmo quando o levou à Europa, em 1937. O ambiente na Áustria não podia ser mais sombrio e Salinger regressou rapidamente a Nova Iorque decidido a ser escritor e a produzir “o grande romance americano” como tantos outros, antes e depois dele. Em 1941, depois de várias tentativas fracassadas, conseguiu finalmente publicar uma história na mítica revista New Yorker, “Slight Rebellion Off Madison,” o primeiro esboço de “À Procura no Centeio”. Mas enquanto os seus contos percorriam o habitual circuito editorial nova-iorquino, Salinger foi chamado para a Guerra e despachado para a Europa onde foi integrado nos serviços de espionagem especializados na caça aos nazis. ( De notar a estranha semelhança com o tema do mais recente filme de Tarantino). Mais tarde esteve envolvido no desembarque dos Aliados e na batalha de Bulge o que lhe deixou marcas psicológicas tão profundas que, de volta aos Estados Unidos, foi internado por sofrer de “fadiga de guerra”, aquilo a que hoje chamamos “stress pós traumático”. É possível que esta doença tenha sido uma das causas do seu subsequente afastamento da vida pública e não deixa de ser irónico que ele tenha desejado o sucesso como escritor e o tenha obtido, em doses maciças, com a publicação, em 1951, de “À Espera no Centeio” e do conto “A Perfect Day for Bananafish”, uma história totalmente diferente, austera e sombria. A sua reputação de autor original e rebelde foi reforçada com os contos dedicados à família Glass que publicou em seguida e que apareceram em formato de livro, em 1961, com o título “Franny e Zoey”, uma obra que Salinger dedicou ao seu amigo e companheiro agorafóbico, William Shawn, editor da New Yorker.   

Gerald Rosen em Zen in the Art of J. D. Salinger ( 1977) observou que “Franny e Zoey” pode ser interpretado como um conto Zen moderno, uma história em que as personagens – principalmente Franny – se vão desenvolvendo psicologicamente, passando de um estado de ignorância para um de iluminação. Os Glass, pai, mãe e sete brilhantes crianças e adolescentes tornaram-se extremamente populares à medida que as suas aventuras eram publicadas e o seu dia-a-dia acompanhado – ainda na New Yorker – por dedicados leitores que apreciavam a crítica social seca e irónica dessa época de conformismo e laxismo. Enquanto a Guerra Fria se enraizava e na América imperava o extremo patriotismo, Salinger, o eterno rebelde, virou-se para as filosofias orientais e para os contos do folclore russo, dando voz às suas personagens que discutiam religião e misticismo, educação, intelectualismo, sucesso e fama. Quando o volume de contos “Nine Stories” foi publicado em 1953, o autor parecia imparável, cada vez mais admirado e adulado. Anos mais tarde um crítico do New York Times afirmou que” muito raramente na história da literatura terá havido um punhado de contos que suscitasse tanta discussão, controvérsia, elogios, denúncias, mistificações e interpretações”.

Depois, subitamente, tudo mudou. Houve um penoso romance fracassado com a filha de Eugene O’Neil, Oona O’Neill – futura mulher de Charlie Chaplin – e Salinger, o atraente e rico judeu intelectual de Manhattan, decidiu retirar-se para Cornish, no New Hampshire. Já tinha sido casado por alguns meses com uma médica alemã durante a guerra, mas divorciara-se e desposou Claire Douglas de quem teve dois filhos, mas o casamento não durou muito. 

Salinger passou a esquivar-se a todos os contactos sociais e profissionais embora tenha sido capa da revista Time em 1961 e se encontrasse regularmente com Shawn em Nova Iorque, evitando sempre a “mesa redonda” no Hotel Algonquin onde se reunia a nata da vida literária. Numa das raras declarações para a imprensa, em 1974, quando tentava impedir a publicação de algumas histórias inéditas, afirmou que o “ próprio acto de publicar (constituía) uma terrível invasão da sua privacidade”. Em 1984, quando o crítico literário britânico Ian Hamilton levou avante a escrita de uma biografia não autorizada, Salinger processou-o e ganhou. (Recorde-se que em Junho de 2009 o autor sueco Fredrik Colting viu o seu livro, uma sequela de “À Procura no Centeio”, suspenso indefinidamente depois do veredicto de um tribunal federal.)

Mas o golpe mais duro para Salinger aconteceu quando a escritora Joyce Maynard publicou, em 1998, “At Home in The World” (um título ironicamente desafiador, contraponto da afirmação do escritor de que “estava neste mundo mas não pertencia a este mundo”), no qual descrevia minuciosamente os dez meses em que viveram juntos, em 1973.

Joyce, uma talentosa e anoréctica caloira de Yale tinha escrito um artigo para o New York Times intitulado “Uma Jovem de Dezoito Anos Recorda a Sua Vida Passada”. Salinger, quebrando o seu distanciamento, escreveu-lhe uma carta a dar-lhe os parabéns. Continuaram a trocar correspondência cada vez mais inflamada e, finalmente, Joyce, apareceu-lhe à porta de casa. No início, a ligação foi “intoxicante” e Salinger mostrou-se um homem apaixonado, vibrante e cheio de ideias. Mas Maynard cedo descobriu que o escritor era abusivo e manipulador, tinha hábitos alimentares estranhos – ervilhas congeladas ao pequeno-almoço, hambúrgueres crus de cordeiro ao jantar – era hipocondríaco e paranóico, mantinha uma admiração secreta pelas mais absurdas manifestações da cultura popular – incluindo talk –shows – e a vida sexual de ambos tornou-se um pesadelo. Ela tinha 18 anos, parecia ter 12, ele já contava 53 e a meio de uma viagem à Florida, o escritor mandou-a subitamente embora, alegando que ela queria aproveitar-se da sua fama. Em 2000, uma nova vaga de revelações, agitou o meio literário. Margaret, a filha de Salinger publicou as suas Memórias onde retratava o pai como um ser patologicamente egoísta e violento, obsessivo em relação à sua dieta, à homeopatia, ao Budismo Zen, ao Hinduísmo, e à Cientologia. Contou, ainda que o pai bebia a própria urina e se fechava durante horas numa caixa contendo energia orgónica.

Idiossincrasias à parte, a escrita de Salinger é inimitável e inultrapassável em originalidade, tendo influenciado profundamente autores como John Updike, ( “Rabbit” deve muito a Caulfield) Philip Roth, Harold Brodkey, Jay McInnerney e Brett Easton Ellis, entre muitos outros. Salinger estava absolutamente convencido de que os escritores vendiam a alma ao diabo ao se deixarem corromper pela fama e pela lisonja, duas forças que ele considerava absolutamente destrutivas, tão arrasadoras quanto a vaidade que, para ele, invalidava a capacidade de julgar. A sua amiga de longa data Lillian Ross – lendária jornalista da New Yorker e companheira de Shawn – conta que Salinger gostava de repetir uma citação de Emerson: “Um homem tem que ter tias e primos, tem que comprar cenouras e nabos, tem que construir celeiros e abrigos, tem que ir ao mercado e ao ferreiro, tem que mandriar e dormir, tem que ser inferior e idiota”, acrescentando que os escritores tinham dificuldade em reconhecer a sua humanidade e eram “incapazes de comprar nabos ou cenouras”.  

Este sentido crítico em relação aos seus pares seria uma forma de mascarar a sua própria incapacidade para escrever? Se realmente existem volumes de contos sobre a família Glass como tem sido avançado, para que serviriam fechados em caixas, no New Hampshire? (Recorde-se que o último trabalho de Salinger a aparecer foi “Hapworth 16,1924,”, uma longa história que ocupou quase por completo a edição de 19 de Junho de 1965 da New Yorker) 

Será finalmente agora, com Salinger morto, que a “arca” do tesouro será revelada? Irá o seu público, aquele que se revê em Holden Caulfield, deleitar-se com a escrita que ele tão zelosamente guardou? Ou será confrontado com os vestígios da vida solitária e desperdiçada de um homem que, um dia, escreveu um livro cujo título – inspirado num poema de Robert Burns – remete para uma juventude inquieta que precisava de ser “salva” das errâncias em campos de centeio, longe de qualquer olhar protector.


 

 

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publicado às 15:42


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