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Alice Munro ganhou o Prémio Nobel, 2013. Vem a propósito republicar um texto sobre uma das suas colecções de Contos, "O Amor de Uma Boa Mulher".
Existem sempre inúmeras mulheres, de todas as idades e feitios, nos contos da escritora canadiana Alice Munro, nascida na província de Ontário, em 1931. Os estudos de género debruçam-se com aplicação sobre as suas personagens de mães, filhas, irmãs, amigas, companheiras, primas, vizinhas e amantes que enchem páginas e páginas com as suas acções, os seus sobressaltos e ansiedades, num mundo acolhedor e caseiro mas por vezes sombrio, onde os gestos habituais podem bem esconder pensamentos pouco recomendáveis. É em torno destas figuras femininas que tudo gravita, incluindo os homens que se limitam a segui-las ou a abandoná-las, a amá-las e a desejá-las, a ignorá-las ou a imporem a sua presença. No universo das mulheres tudo fervilha e crepita e elas, como abelhas diligentes, como formigas cumpridoras ou como alegres cigarras, ocupam-se dos filhos e das casas, são provedoras do conforto – mas também causadoras de incómodos – gerem conflitos e defendem interesses, entre porcelanas, molhos de menta, livros, bolos, móveis descarnados, águas de colónia, roupa interior, flores, abraços, lágrimas e hospitalidade transbordante. Ao ocuparem um lugar tão central, elas são sempre as personagens verdadeiramente interessantes, cheias de complexidade e segredos, adúlteras e por vezes psicóticas, plenas de malícia e de mau-humor, apaixonadas, violentas e ternas.
Ao longo de mais de meio século, Alice Munro tem persistido nas suas narrativas perfeitamente buriladas sobre as relações entre os membros de famílias aparentemente banais, no ambiente semi-rural que a viu nascer. A tensão e as clivagens, que se espalham como uma epidemia entre as personagens, remetem-nos para Raymond Carver e Anton Chekhov, principalmente naquilo que sugerem em termos de “brevidade e ansiedade”, numa escrita minimalista e cortante mas extremamente rica na construção de ambientes e descrição de detalhes.
Alice Munro começou a escrever ainda na adolescência e, ao longo dos anos, os seus contos adquiriram um estatuto de singularidade, tendo sido considerados como os mais interessantes e bem conseguidos da literatura contemporânea, ao lado dos da norte-americana Jayne Anne Phillips e seguindo a tradição da grande Flannery O’Connor, a quem Munro presta um óbvio tributo, muito evidenciado no conto “Salvo o Segador” que recupera o famoso “Um Homem bom é difícil de encontrar”, essa “jóia da coroa” da autora sulista, que desenvolveu com perícia o género gótico-grotesco muito utilizado, também, por Faulkner e Carson McCullers. No entanto, e apesar de, em Munro, se encontrar uma forte componente de “espírito do lugar” e uma vaga tensão ameaçadora, as história de “O Amor de Uma Boa Mulher” reflectem uma realidade diferente, talvez menos acerba ou carregada da angústia violentamente católica de O’Connor mas igualmente complexa e surpreendente.
Na história que dá o título ao livro, três rapazes correm e brincam juntos. Em casa têm vidas, famílias e atmosferas diferentes mas, na rua, são livres e sentem-se poderosos. Um dia, encontram um cadáver dentro de um carro abandonado e não sabem como agir. Nada comunicam à Polícia e vão para casa almoçar. Esta hesitação torna-se o pretexto para a autora nos enredar numa teia de afectos e cumplicidades, segredos e “coisas que ficam por dizer “, pesadelos e mentiras. Este, tal como a maior parte dos outros contos, passa-se nos anos 50, num tempo de grandes mudanças, quando – pelo menos em relação às mulheres – se vivia numa época que “estava no fim, embora (as pessoas) ainda o não soubessem”, como diz a “pequena noiva” em “A Ilha de Cortés”, a jovem que acaba por ficar fascinada com o mistério que envolve a vida dos vizinhos do andar de cima e os segredos de um fogo de consequências fatais.
Em “As Crianças Ficam”, uma família passa férias na Ilha de Vancouver. Tudo parece correr bem, é Verão, as filhas brincam felizes na praia, mas Pauline, a mãe que se sente aprisionada no casamento, só pensa no amante, o director de um teatro local e acaba por partir – como Anna Karenina e Madame Bovary – deixando tudo para trás, preocupada apenas em “seguir em frente e habituar-se, até que seja só o passado a doer e não o presente, seja ele qual for”. Em “O Sonho da Minha Mãe”, um feroz nevão transforma a percepção das coisas e uma mulher tenta lembrar-se onde deixou um bebé “lá fora, durante a noite”, enquanto este pesadelo se confunde com a morte do marido. Em “Jacarta” duas amigas travam uma guerra fria, feita de mal entendidos e sugestões ácidas e, em “Podre de Rica”, mãe e filha confrontam-se violentamente num abismo de solidão.
As histórias de Munro, embora estreitamente relacionadas com a sua geração, possuem uma espécie de atmosfera intemporal e sonhadora. São meditações – de onde não está ausente um certo espanto ligado a um sentido de humor bastante subtil e quase desesperado – em torno das mutações constantes e eternas tanto na sociedade como no lugar mais íntimo do pensamento e das emoções de cada ser humano, com os seus anseios e lutas e, principalmente com as suas incomensuráveis faltas.
O Amor de Uma Boa Mulher, Alice Munro
Ed. Relógio D’Água
Tradução José Miguel Silva
Nota: Este texto foi publicado no Jornal Público, Lisboa, no Suplemento Cultural Ípsilon
AGUSTINA
Quantos mundos cabem no universo de Agustina? Na sua extensa e variada obra, a escritora criou uma galáxia de personagens e lugares, de emoções e sensações, de ímpetos e desejos que a tornam única e, evidentemente, imprescindível para a compreensão da nossa identidade e da nossa cultura. Ao longo de mais de cinco décadas, construiu sem parar as suas histórias onde é possível, como acontece com todos os grandes autores, ver espelhada toda a humanidade. Senhora de uma capacidade invejável para a criação de tramas numa linguagem torrencial e vertiginosa, Agustina arrasta-nos pelas paisagens férteis do Douro, pelas ruas e traseiras dos prédios do Porto, pelas salas, corredores e recantos das casas rurais ou citadinas, acompanhando homens e mulheres, fortes e fracos, fiéis e desleais, a braços com o tumulto do mundo. Porque, se Agustina parece desejar a manutenção de um estado de coisas mais ou menos fechado, num ambiente tradicional e conservador – nas famílias, nas terras, na política, nas relações – a verdade é que ela conhece bem a impossibilidade de evitar a desordem amorosa, a decadência física e moral e o ímpeto da Natureza que criam o caos e perturbam a quietude desejada.
As Artes de Agustina:
Haverá poucos escritores portugueses em cuja obra seja tão estreita a relação entre a palavra e a imagem como no caso de Agustina. Realizadores de cinema como Manoel de Oliveira e João Botelho compreenderam bem o potencial das luxuriantes descrições das paisagens – interiores e exteriores – da vida dos objectos, do evoluir das personagens que abundam nos seus livros, tendo transposto para o ecrã essa complexa teia. Mas se Agustina “dá a ver” através da escrita, ela é, também, uma observadora curiosa e atenta. A sua cumplicidade com Maria Helena Vieira da Silva ficou registada em “Longos Dias Têm Cem Anos” e o fascínio por Rembrandt deu origem a “A Ronda da Noite” com o seu inquietante mistério. A atracção pelo palco, o imaginário infantil, a crónica e o ensaio são outras tantas Artes de Agustina.
Homens e Mulheres em Agustina:
A sua galeria de personagens masculinas e femininas – a que se deve acrescentar a de alguns animais emblemáticos – rivaliza com as de Camilo Castelo Brando e Eça de Queirós, para nomear apenas dois dos nossos grandes escritores. Seja no amor, na dança erótica, nas batalhas sem tréguas, nas cumplicidades e alianças entre os representantes dos dois sexos, seja nos mínimos detalhes da vida familiar, Agustina não deixa de introduzir pormenores inquietantes e desafios complexos. É através das suas figuras femininas e masculinas, de todas as idades, que Agustina define um sistema de valores que rege um universo aparentemente rígido. Mas a força imanente e telúrica do lado feminino e o exercício da vontade do lado masculino estabelecem um desequilíbrio constante e perigoso.
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Agustina e as Relações de Poder:
Em Agustina, nada é pacífico. Por essa razão não admira que a busca e exercício do poder seja um dos temas mais fascinantes da sua obra. E, uma vez que o poder se adquire através da luta, há inúmeras batalhas nos seus romances e Biografias romanceadas: lutas entre mulheres e homens, entre pais e filhos(as), entre classes – a da aristocracia rural nortenha, a da burguesia portuense, a dos senhores e dos criados. Agustina é uma mulher que não descura o exercício da política – daí o fascínio por figuras como o Marquês de Pombal (em “Sebastião José”) e como Francisco de Sá Carneiro (em “Os Meninos de Oiro”) para dar só dois exemplos – e sabe bem como os seres humanos atravessam a vida esgrimindo agilmente todas as possibilidades de dominação.
Os Aforismos de Agustina:
Dada a complexidade dos aforismos de Agustina a sua leitura transforma-se numa resolução de charadas. Mais do que provérbios, ditados ou sentenças em torno de temas que vão do amor à morte, do desejo às virtudes, do sofrimento à felicidade, estas frases lacónicas e cortantes, aproximam-se da reflexão filosófica e fazem as vezes de revelações ditas por um oráculo esclarecido e visionário. Um aforismo pode ser sibilino, luminoso, pacífico ou escandaloso. Agustina dá-nos a provar o sabor de todos eles.
Chicago Blues
Foi preciso um judeu, filho de imigrantes russos, nascido em Lachine, Quebéque no Canadá, e transplantado para Chicago, para que o grande romance americano do século XX ganhasse um novo fôlego. A história de Augie March, passada no período entre os anos 20-40 do século XX – com a eclosão de grandes fortunas e a subsequente Grande Depressão – é um testemunho da grandeza e da mestria de Saul Bellow o qual, aos 38 anos, munido de todas as armas de que dispunha, se lançou a relatar as errâncias de um rapaz que se torna homem num espaço fértil, produtivo e monstruoso, tanto para o amor, as boas causas e as melhores intenções, como para os negócios escuros, as traições e o crime. Na primeira frase do romance Augie March apresenta-se, não pelo nome próprio – como acontece em “Moby Dick” com a famosa invectiva “Chamem-me Ismael” – mas sim como “americano, nascido em Chicago…”, marcando desta forma a sua especificidade. É verdade que estes dois atributos são os que determinam o seu destino num universo repleto de gente traiçoeira e manipuladora ( Bellow começou por chamar ao seu romance “Vida entre os Maquiavélicos”), gente essa que ele defronta com habilidade e bravura, até mesmo com verve e doses maciças de chutzpah .
Augie pertence a uma lista de heróis, de Tom Jones (o seu “irmão” mais dilecto) a Harry Potter, passando por Pip, Oliver Twist, Huckleberry Finn, Heathcliff e muitos outros, para quem a orfandade é um trunfo que lhes abre a porta para infinitas possibilidades. É verdade que Augie começa por falar na família, no tempo em que é ainda um rapaz de calções a fazer recados e a esgueirar-se pelos quintais; mas o pai abandonou-os, a mãe está cega, um dos irmãos é autista (o mais velho, Simon, é uma versão dele próprio com a vantagem de alguns anos) e a temível “avó” Lausch não está ligada a eles por qualquer parentesco, embora seja determinante – pela negativa – na sua “formação”. Com os seus rígidos princípios de educação aristocrática – que incluem defraudar a Segurança Social – a kaltblütig senhora representa o Velho Mundo, hipócrita e matreiro, feito de sonhos de grandeza fanada e de recordações de tenebrosas travessias atlânticas. Augie não quer saber dessa herança de pogroms e de mansões abandonadas – embora regresse à Europa, no fim do livro – e persegue destemidamente os ditames do seu “eu” profundo, fruto de um espírito comum – o americano – e de uma cidade, Chicago, a sua verdadeira mãe, protectora, educadora e provedora.
Apesar do seu olhar cristalino, March não é inocente e está perfeitamente à vontade na companhia de gangsters e de marginais, nesse submundo de uma metrópole generosa que lhe oferece, também, o vislumbre da riqueza e do poder, nem que seja pelas frestas que dão para a rua, na cave dos Armazéns onde, a certa altura, trabalha. Mas a inquietação de Augie, que o leva a pular de emprego em emprego, de amigo em amigo, de paixão em paixão, o seu perpétuo movimento de aceitação e confronto de, e com, aqueles com quem se relaciona, são uma garantia de independência num universo fervilhante a abarrotar de uma “multidão bíblica” – judeus oriundos do Leste europeu, italianos, irlandeses, ingleses, russos, mexicanos, alemães – que se afirma como uma verdadeira família. O seu habitat natural é a rua, que lhe facilita os movimentos de um lado para o outro, entre estações, bares, antros de bilhar, apartamentos sombrios, barbeiros, vãos de escadas, agências de apostas e traseiras de prédios.
Bellow, um admirável estilista da linguagem, não deixa escapar nenhum pormenor: descreve, com uma insistência quase erótica, o crescimento de March, a forma como os seus membros se distendem, como as suas passadas se tornam mais firmes, como os seus músculos se desenvolvem, como o seu olhar endurece, como a sua postura se agiliza e liberta. Ficamos a saber como ele ouve, cheira, sente, vê, tacteia, como se veste (com as roupas cada vez mais elegantes, fornecidas pela senhora Renling) e como se apaixona. Saul Bellow foi sempre um fervoroso apreciador compulsivo de listas – de objectos, de acções, de adjectivos, de lugares, de nomes, de sensações – que desfia, entrelaçadas na narrativa, criando uma imagem poderosa de abundância, de grandeza e desperdício, nesse caos que resiste alegremente a qualquer tentativa de ordem.
O ritmo “jazzístico” de Bellow impõe-se a cada momento, quando descreve os movimentos de Augie, a velocidade da cidade, o frenesim do acto amoroso, o troar do tráfego, o zumbido das máquinas, a excitação das apostas, as subidas e descidas na Bolsa e essa incomparável capacidade do povo americano para se reinventar a cada momento, mudando de nome, de lugar, de emprego, explorando ao máximo um território vasto e fecundo.
Críticos de reconhecida competência têm comparado, ao longo dos anos, Augie March a Tom Sawyer e a Huckleberry Finn, referindo a chamada “literatura de fronteira”, embora essa etiqueta seja mais apropriada quando aplicada a autores como James Fenimore Cooper ou, mais recentemente, Larry McMurtry e Cormac McCarthy. É claro que Bellow escolheu o título, “As Aventuras de Augie March”, com um propósito específico mas o que ele pretende – e consegue – é demarcar-se de um certo traço cru e violento desse vago género literário, utilizando personagens mais complexas e subtis do que as de Mark Twain e um estilo narrativo que se aproxima mais da poesia de Walt Whitman. Bellow poderá eventualmente ser comparado a Twain pela veia cómica que partilham, mas Augie está bem mais próximo de Holden Caulfield de “À Espera no Centeio” ( J. D. Salinger publicou o seu best-seller dois anos antes do de Bellow) e de Jay Gatsby, embora o herói de Scott Fitzgerald seja uma personagem trágica, alguém que nunca chega a pertencer a um lugar, a uma paixão, a um meio social, enquanto que Augie March, por contraste, navega com subtileza e desenvoltura no grande caldo da identidade americana. Bellow chamou a este seu romance, uma “narrativa expansiva, optimista, exuberante e celebratória” e é possível que Augie seja tão semelhante ao seu autor como duas gotas de água: a mesma substância, a mesma composição química, em formas variadas de acordo com o espaço, o tempo e a inclinação. “As Aventuras de Augie March” é, sem dúvida, uma longa ode à liberdade, a transpirar de energia por todos os poros, com um herói que se deixa arrastar pelo mundo que o rodeia, sempre com a esperança de que os acidentes de percurso o empurrem para um destino melhor.
.(Uma menção ao trabalho do tradutor: embora haja sempre a possibilidade de discutir uma ou outra escolha de palavras ou de expressões, o resultado não poderia ser melhor. A dificuldade em verter Bellow para outras línguas é enorme; no entanto, aqui, a sua voz, o seu ritmo e a sua especificidade não se perdem.)
As Aventuras de Augie March, Saul Bellow, Ed. Quetzal, Tradução de Salvato Telles de Menezes
Texto publicado no suplemento Ípsilon do jornal Público, Lisboa.