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Imagem : Harper Lee com o seu grande amigo Gregory Peck que fez o papel de Atticus Finch no filme de Robert Mulligan, de 1962.
Harper Lee (nasceu em 1926, em Monroeville, Alabama) é uma das escritoras mais amadas da Literatura americana apesar de, ao longo da sua já longa vida – tem agora oitenta e sete anos – ter publicado apenas alguns (muito poucos) contos e poemas dispersos por revistas e um único romance, este “Mataram a Cotovia”, o qual, juntamente com “Huckleberry Finn” de Mark Twain e principalmente com “À Espera no Centeio” de J.D. Salinger, forma uma trilogia de cariz iniciático para a maior parte dos jovens americanos – e não só.
A acção de “Mataram a Cotovia” inicia-se no Verão de 1933 e desenrola-se no rescaldo da Grande Depressão quando na América, mergulhada numa feroz recessão, qualquer incidente servia de rastilho para uma escalada de violência. Na sonolenta e escaldante Maycomb, um negro, Tom Robinson, é preso por ter supostamente violado uma mulher branca. Atticus Finch, um proeminente e respeitado advogado de uma antiga família da terra, homem de princípios morais irrepreensíveis e grande autoridade – Gregory Peck, no cinema e o pai da própria autora, na vida real – toma a si a responsabilidade de defender Tom. A decisão é pouco popular, dividindo a comunidade branca atrasada, ignorante e pobre – representada por Bob Ewell, o pai alcoólico e racista da jovem violada – e a comunidade negra, não menos pobre, e constantemente vítima de abusos. Entre estes dois mundos tão diferentes, mas obrigados a conviver estreitamente em permanente tensão, surgem personagens como o próprio Atticus, como Dolphus Raymond, um homem rico que vive com uma negra e pretende ser um alcoólico para “justificar” a sua estreita confraternização com “o outro lado” ou como Calpurnia, a empregada (também) negra dos Finch, que prefiguram um novo estado de coisas, mais humano e mais justo. Atticus é o pai de Scout, uma menina curiosa e impetuosa, ( uma “maria-rapaz”, como a própria Lee) e de Jem que, com o estranho amigo Dill ( Truman Capote afirmou peremptoriamente que a autora se tinha baseado nele para criar esta personagem), forma o trio de crianças aventureiras e corajosas desta saga moral em que as “cotovias” são o símbolo dos pobres inocentes – tais como Tom – sacrificados no altar da intolerância e do preconceito.
“Mataram a Cotovia” foi publicado no Verão de 1960, uma altura em que, na sociedade americana, os ânimos estavam ao rubro na luta pelos Direitos Civis. O romance de Lee foi muito bem recebido – Prémio Pulitzer, adaptação cinematográfica, honrarias para a autora – porque retrata, com admirável claridade o tipo de personagens e conflitos universais facilmente reconhecíveis pelos leitores da altura: um homem sábio e corajoso, representante de uma nação que se queria mais liberal e justa, um xerife que cumpre a Lei, jovens impetuosos e criativos, (transformadores da sociedade), um marginal que todos supõem louco e as marcantes figuras das mulheres sulistas – que tanto podem ser “histéricas”, à maneira de Tennessee Williams, como resistentes matriarcas, geralmente negras, como as heroínas de Zora Neale Hurston.
“Mataram a Cotovia”, na sua singularidade, é não só uma história “(i)moral” - uma mistura explosiva de sexo, calor, racismo e crime, com um final dramático - mas também um romance de aventuras protagonizadas por Scout, Jem e Dill, nas suas relações pungentes com o bizarro Boo Radley e a sua casa “assombrada”. O imaginário “gótico”, com os seus desastres e fantasmagorias – um fogo devastador, uma queda de neve anormal, um cão danado e uma noite de Halloween – prevalece, em múltiplas variantes, em autores sulistas como a popular Anne Rice ou a mais sofisticada e igualmente reclusa, Donna Tart. ( Espera-se para este ano o terceiro livro desta escritora que publica um romance em cada década – “A História Secreta”, em 1992, e o mais directamente influenciado por Lee, O Pequeno Amigo, em 2002).
Embora tenha revelado, numa das suas raras entrevistas, que “só queria ser a Jane Austen do Alabama”, Harper Lee não chegou a publicar – até agora – um segundo romance que, ao que se sabe, permanece inacabado. A sua amizade e estreita colaboração com Truman Capote, com quem se deslocou na célebre viagem a Holcomb para investigar o assassínio de uma família local tornou-se lendária e o material coligido por ambos acabou por ser publicado, primeiro no The New Yorker e, mais tarde, convertido no célebre “A Sangue Frio” de Capote, publicado em 1966.
Lee, uma purista da linguagem, eternamente crítica em relação ao “desleixo” de muitos autores seus contemporâneos, continua a considerar-se a grande discípula de Faulkner e uma admiradora de Updike. No entanto, é mais pertinente referi-la como a herdeira de Mark Twain, não só no que diz respeito à linguagem, ao ambiente e às personagens, como na que se refere aos temas e à forma como são abordados. Sem esquecer a ironia, Lee ressalva sempre o “instinto tribal” da importância da tradição oral que marca fortemente a “sua” literatura sulista, feita de contadores de histórias e de românticos aventureiros(as), defensores do Bem e opositores do Mal.
Harper Lee afirmou que não sentia qualquer necessidade em continuar a escrever – embora, possivelmente o tenha feito toda a vida – uma vez que dissera tudo neste romance: um retrato fiel da América profunda com todos os preconceitos, hipocrisia, violência e irracionalidade que, ainda hoje, continuam a ser notícia.
“Mataram a Cotovia” Harper Lee, Ed. Relógio D ’Água, Tradução de Fernando Ferreira - Alves.
Publicado em Jornal Público, Suplemento Ípsilon, 2013
Os Crimes dos Nossos Pais
"O Sonho mais Doce" (2001), da britânica Doris Lessing, vencedora do Nobel de Literatura em 2007, devia vir com um aviso: "este livro pode ser prejudicial para os nostálgicos da Revolução! ".
Essa mesma Revolução, que incendiou os ânimos nos anos sessenta e setenta, é o tema deste romance que começa com os grandes movimentos europeus de rebelião do pós-guerra e termina nos finais do século XX. Lentamente, ao longo de uma narrativa que, a princípio, parece desfiar uma história banal de famílias imersas no brilho intenso dos amanhãs que cantam, a autora ajusta contas com a História. (Camaradas, companheiros unidos, cuidado. Porque esta senhora sabe do que fala).
Na nota introdutória, Lessing explica que este livro é uma alternativa ao terceiro volume da sua autobiografia - que ela não publica para não magoar "pessoas vulneráveis" - mas é óbvio que muitas das suas personagens são baseadas em figuras que marcaram a sua vida. Frances, muito parecida com a autora, é central nesta "ficção" que gira em torno de uma mulher maternal, sólida e que é uma espécie de figura feminina primordial, uma "mãe-terra" que se debate na, por vezes caótica, acção do livro. É ela que acolhe, alimenta, dá apoio e protege todos os jovens que batem à porta da grande casa londrina com os seus múltiplos pisos, a sua glória fanada, a sua mesa farta e um sofá sempre pronto para os excedentários que não têm onde ficar. A casa é da sua ex-sogra, Julia, uma alemã que casou com um inglês - com quem Frances mantém uma relação crispada e eventualmente cúmplice - e que representa o passado e os fantasmas da Segunda Grande Guerra, isto é, a herança nazi, um facto que o seu próprio filho, o camarada Johnny , não se coíbe de recordar, principalmente quando ela lhe nega qualquer coisa. Johnny entrega-se, de alma e coração, aos deveres revolucionários pelo o que não pode perder tempo com assuntos burgueses, tais como a família, os bens materiais, as tarefas quotidianas. O mesmo Johnny que aparece ocasionalmente na casa para comer ou dormir e que congrega à sua volta os entusiásticos jovens que vêm nele uma espécie de guru, enquanto os próprios filhos e as ex-mulheres são sujeitos a desprendidas torturas psicológicas.
Johnny repudia veementemente atitudes "fascistas" como as preocupações da ex-mulher e da mãe quanto à forma de gerir o orçamento familiar, fazendo desaguar, na grande casa, os camaradas revolucionários da África Oriental , jovens transviados, ex-mulheres e ex-enteadas assim como a anoréctica Sylvia, a pomba, a criança etérea que se metamorfoseia em médica e parte para a fictícia Zimlia, seguindo o seu caminho de mártir num lugar onde a Sida, a fome, o abandono, a cupidez, a paranóia e a corrupção grassam, com devastadora rapidez. Entretanto , Johnny, chantageando e manipulando aqui e acolá, hostilizando os filhos e desapontando Frances - que está sempre á espera que ele contribua para a manutenção da família para poder dedicar-se à sua paixão, o teatro - é quase uma figura cómica se não fosse tão pertinentemente nociva. (O seu egoísmo e cegueira são um reflexo da personalidade de Gottfried Lessing, o segundo marido da autora, um alemão que, mais tarde, foi embaixador da Alemanha Oriental no Uganda, onde foi assassinado, durante uma rebelião contra Idi Amin. Não pode passar despercebido, tão pouco, o facto de a própria escritora, quando jovem comunista no Zimbabué ter abandonado os filhos do primeiro casamento quando partiu para Londres, em 1949.)
Doris Lessing, através de Frances, recorda esses tempos e as suas sequelas, a falta de dinheiro, a instabilidade, os trabalhos precários como jornalista, a pressão dos camaradas. "A vossa geração deve ser a mais arrogante e presunçosa que jamais existiu" diz Colin, um dos filhos, exasperado com a estupidez do pai e com a permissividade da mãe. Na verdade, a casa onde cresce com o irmão Andrew e o resto dos pensionistas representa uma espécie de laboratório onde são chocados como ovos das serpentes: Rose, a frustrada e maldosa futura colunista de mexericos, Sophie, bela e inútil, Franklin, o jovem negro bem disposto que se torna um ditador corrupto à frente de Zimlia, um País cujas semelhanças com o Zimbabué não são uma coincidência.
Assim, a segunda parte de "O Sonho Mais Doce" é uma consequência da primeira e remete-nos para uma actualização do tema de "A Erva Canta" (1950), o romance de estreia de Lessing passado em África, um relato doloroso e desencantado, que evoca magistralmente os efeitos do pós-colonialismo, a grande farra dos anos oitenta, o eclodir da Sida, o desamparo das populações e a hipocrisia do Ocidente. (Os gurus dos anos setenta transformaram-se em políticos influentes e desapiedados, em homens de negócios brutalmente ligados ao capital ou em religiosos de uma qualquer seita).
Quando publicou "The Golden Notebook ", em 1962, Lessing, adepta e estudiosa do Sufismo, católica durante um curto espaço de tempo, disse que o exercício da escrita lhe revelara que muitas das coisas em que ela pensava que acreditava não passavam de artifícios da sua própria mente e que a escrita tinha uma função curativa para o seu "eu", fragmentado pela desilusão com o comunismo, a rejeição emocional, a traição sexual, as ansiedades profissionais e as tensões entre amigos e familiares. Refere os horríveis sacrifícios que se fizeram em nome de utopias que degeneraram em abandono e conflitos sangrentos, utilizando a figura de Sylvia - um seu alter-ego redentor - para exemplificar o triste desperdício das boas causas. Para uma mulher que foi educada numa escola católica em Salisbúria (hoje, Harare), onde também estudou Mugabe, Lessing é de uma brutal franqueza quando diz que tem medo das religiões porque a sua capacidade assassina é aterradora. Ela sabe bem que a nova África foi (de)formada pelo cristianismo, pelo marxismo, pelo islamismo e pelas religiões primitivas animistas, um cocktail explosivo e devastador que serviu os intentos de muitos dirigentes, barricados nas capitais e empenhados sobretudo em construir as suas vastas fortunas.
Numa entrevista a um jornal americano, Lessing disse o seguinte:" olhando para trás parece-me uma tragédia que nos tenhamos identificado com a União Soviética que era, já por definição, um falhanço, povoado de políticos corruptos que mentiam. Toda a esquerda estava sempre a falar da União Soviética ou a defendê-la, o que a tornou conivente com esse falhanço. Na realidade, a União Soviética nuca teve nada a ver connosco. Podíamos ter perseguido os nossos ideias na Europa, sem essa referência. Se tivéssemos agido dessa forma, o socialismo não estaria morto, como na realidade, está." Desta forma, a então jovem comunista fala com frieza dos ideais traídos, aquela que foi celebrada pelas feministas desfaz à machadada, o feminismo, a adepta do amor livre mostra, agora, as dolorosas cicatrizes da aventura, a apoiante dos movimentos de libertação em África não perdoa a corrupção que grassa entre os líderes do continente negro. O Sonho Mais Doce , venenoso, doloroso e arrasador, transformou-se num pesadelo.
Ed. Dom Quixote, Lisboa
Tradução de Fernanda Pinto Rodrigues
17 Novembro, 2013
Doris Lessing morreu. Não era muito apreciada, embora tenha ganho o Nobel. Dizia-se que não era suficientemente feminista, nem fora suficientemente comunista. Teve dois filhos que deixou para trás, pequenos, em África porque já "não aguentava aquela vida de matrona". Quando começou a ter sucesso com o seu THE GOLDEN NOTEBOOK, virou-se para a escrita de uns intragáveis romances de ficção científica. Dizia o que lhe apetecia. Nasceu na Pérsia (Irão). Cresceu na antiga Rodésia (hoje Zimbabué). Era "esquisita". Adorava gatos. Parecia a Gertrude Stein. Viveu na "swinging London" com o zelo de uma convertida. Teve muitos amantes, graças a Deus! Comecei a lê-la em miúda - levava os livros para cima das árvores. Aqui fica um trecho de A ERVA CANTA - a história da relação de uma branca com um negro nos tempos coloniais - que me deixou pensativa: "Muitos destes jovens haviam sido educados com vagas ideias de igualdade. Nas primeiras duas ou três semanas ficavam chocados com o modo como os nativos eram tratados. Cem vezes ao dia, sentiam-se revoltados pelo modo como as pessoas os tratavam, como animais. Vinham preparados para tratá-los como seres humanos. Mas não podiam erguer-se contra a sociedade a que tinham vindo juntar-se. Não levavam muito tempo a mudar. Era difícil, claro, tornarem-se igualmente maus. "
Fotografia: Doris Lessing com Philip Glass que compôs uma ópera a partir de "The Making of the Representative for Planet 8". O libretto é da autoria da própria Lessing.