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Em dia de sessão na CULTURGEST da Comunidade de Leitores, o texto sobre o livro RAPOSAS de FOGO de JOYCE CAROL OATES, publicado no suplemento Ípsilon do jornal Público, Lisboa
A Balada das Raposas Vermelhas
Joyce Carol Oates é uma escritora empenhada em demolir preconceitos e em desfazer estereótipos com um instinto assassino, por vezes disfarçado por uma espécie de raiva mansa aliada a um espírito de vingança extraordinariamente eficaz. É óbvio que Oates se coloca – coloca as suas personagens – do lado dos mais fracos, dos negros, das mulheres, dos desfavorecidos socialmente, de todos os desapossados – em termos físicos, materiais e psicológicos – que vêm, uma e outra vez, o “sonho americano” passar –lhes ao lado. Oates aprecia a violência, tanto latente e subterrânea como óbvia, nas suas múltiplas manifestações, seja no mundo do boxe, em Hollywood, na guerra, nos campus universitários ou nos bairros suburbanos das cidades americanas. Nos seus livros existe sempre a ambiguidade do poder, o desequilíbrio das forças e a perversidade da manipulação. Uma das provas desta sua obsessão encontra-se em obras como “Blonde” (2000) uma ficção em torno da figura de Marilyn Monroe, esse ícone eterno da fragilidade interna e da força poderosa, ou “Black Water” (1992), uma novela ostensivamente acerca do acidente em Chappaquiddick em que esteve envolvido o senador Ted Kennedy e que, na prática, lhe arruinou a carreira política ou, pelo menos, a hipótese de uma corrida à Presidência.
“Raposas de Fogo” é uma história “selvagem” no rasto dos romances de aventuras de fronteira que serviram de sustento a toda uma tradição literária americana que começou provavelmente com James Fenimore Cooper e continuou com Jack London e Mark Twain. As populares baladas que relatavam os feitos de Billy, the Kid e Jesse James, bandidos famosos que ainda conservam o estatuto de heróis – como Robin Hood e Zé do Telhado – e os roubos ousados de Bonnie e Clyde, um casal “maldito” que inflamou a imaginação de gerações, eram avidamente ouvidas e devoradas em folhetins e jornais. Seguindo a tradição, este romance de Oates é uma narrativa politicamente incorrecta e nada exemplar, uma glorificação de marginais e fora-da-lei que, à custa da sua valentia e esperteza, conseguem ultrapassar o handicap de infâncias miseráveis e desprovidas de incentivos. A acção passa-se numa pequena cidade do Estado de Nova Iorque, durante os anos cinquenta do século XX, onde um grupo de adolescentes problemáticas forma um gangue para, assim, resistir ao infortúnio das suas vidas. A história é contada por Madeleine Faith Wirtz, também conhecida por Maddy, ou pelo seu nome de guerra Maddy-Macaca, a Assassina, a qual, tal como Ismael, em “Moby Dick”, passados os anos e cicatrizadas as feridas, chama a si a tarefa de revelar os feitos (e os desaires) do bando.
No princípio não passam de um grupo de miúdas que fogem de casa, para longe do abandono e dos abusos, correndo sobre os telhados para se refugiarem nos braços umas das outras em estreitas camas de adolescentes. Mas entre Betty "Goldie" Siegfried, Loretta "Lana" Maguire, Elizabeth "Rita" O'Hagan está a atlética, destemida, ágil e carismática “Pernas” Sandovsky, com o seu cabelo fulgurante em desalinho e uma ousadia insolente que roça permanentemente a fronteira do perigo. É “Pernas” quem naturalmente assume a liderança das operações das Raposas de Fogo”, depois de uma cerimónia iniciática em que tatuam, no corpo, labaredas incandescentes. “Pernas” é uma feminista activa que procura devolver às suas “irmãs” o orgulho e a valentia, proporcionando-lhes a força de uma segunda família onde elas são protegidas, acarinhadas e respeitadas. Juntas são imbatíveis e os seus golpes tornam-se cada vez mais ousados e ardilosos, enquanto a fama cresce para grande receio e choque da comunidade. “Pernas”, toda ela músculos e nervos, lidera as manobras contra predadores sexuais e outras ameaças mas, à medida que o tempo passa, o brilho da aventura vai-se desvanecendo e, como acontece em qualquer família, há coisas más que são feitas, dores que são infligidas, preconceitos que surgem. É difícil crescer, manterem-se à altura do mito que criaram, serem heroínas quando há contas para pagar. Quando alugam uma casa decrépita para viverem todas juntas – a concretização de uma utopia – aceleram e provocam o seu fim. Encorajadas com os resultados dos golpes de extorsão a homens endinheirados, as “Raposas” decidem-se por um último e glorioso “trabalho” que, evidentemente, corre mal porque a trama segue a sua trajectória clássica: formação, glória e decadência de um grupo (comunidade) cujos membros são afinal simples seres humanos.
A linguagem empregue em “Raposas de Fogo” – não um dos melhores romances de Oates mas seguramente um dos mais representativos da sua natureza - é exuberantemente “juvenil”, cheia de hipérboles, o texto pontuado por palavras em letras maiúsculas, como brilhantes anúncios de néon – “ AS RAPOSAS DE FOGO ARDEM, ARDEM”. O ritmo é acelerado e a autora passa aleatoriamente da primeira para a terceira pessoa, mantendo um clima de exaltação adolescente, de hormonas em ebulição, de vitalidade exacerbada, que acompanha a velocidade do carro habilmente adquirido e sugestivamente apelidado de “Relâmpago”. Mas “Raposas de Fogo” não é (apenas) um romance abertamente feminista. Para além do tom anárquico e desafiador, Oates aborda temas universais: a delinquência infantil como reflexo do abandono familiar, o alcoolismo, o abuso sexual, o consumo de drogas, a defesa dos animais – as “Raposas” levam a cabo um “raid” contra uma loja que mantém os bichos em condições terríveis – a precariedade escolar, a dificuldade de adaptação à vida adulta, o exercício da violência sobre os mais fracos ( e a vingança destes), os preconceitos sociais e raciais. Para Joyce Carol Oates a existência é uma batalha portentosa, durante a qual os ricos, os belos e os poderosos se encontram permanentemente em perigo de
“queda” e os pobres e humilhados – não necessariamente mais simpáticos, bons ou amáveis – têm sempre aberto o caminho da ascensão, embora este se faça à custa de uma esperteza matreira, da força e da violência.
“Raposas de Fogo”, Joyce Carol Oates, Ed. Casa das Letras, Tradução de Cristina Lourenço