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A preparar a próxima sessão da Comunidade de Leitores na Culturgest. A obra em discussão será "A Filha do Optimista" (Prémio Pulitzer, 1973) de Eudora Welty, escritora americana sulista. Eudora nasceu em Jackson, Mississippi, a 13 de Abril,1909 e morreu em 2001. A partir da publicação do seu célebre conto "Morte de Um Caixeiro Viajante" (1936) afirmou-se como uma das autoras chave, inscrita por direito próprio no cânone da literatura norte-americana, embora a sua proverbial discrição a tivesse mantido afastada de circuitos mais mediáticos.
O texto que se segue foi publicado no Suplemento Ípsilon do Jornal PÚBLICO.
Relógios parados
“A Filha do Optimista” começou por ser um conto que apareceu na revista New Yorker, em 1969, e só em 1972, depois de a autora ter revisto e alargado o texto, foi publicado como romance. A estranheza desta narrativa em que quase nada acontece – e que arrebatou um prémio Pulitzer em 1973 – é um milagre de concisão e de contenção minimalista, tendo sido considerada pelos críticos como o trabalho mais subtil de Eudora Welty, a escritora sulista nascida em Jackson, Mississippi, em 1909.
No início, Laurel McKelva, uma viúva sem filhos com cerca de quarenta anos, viaja de Chicago, onde vive, até Nova Orleães para se encontrar com o pai que está nessa cidade para consultar um oftalmologista, um velho amigo que lhe diagnostica um deslocamento da retina e aconselha uma simples operação. Com o Juiz McKelva está a sua nova e esfusiante mulher, impaciente com as consultas e com as demoras, ávida de diversão e de acção. Laurel tem dificuldade em compreender o casamento do pai com a vulgar, espalhafatosa e impertinente Wanda Fay, tão diferente da sua própria mãe, mas acompanha ternamente o enfermo, à cabeceira do seu leito de hospital, lendo para ele e tentando recuperar a cumplicidade de outrora.
Mudança de acção, capítulo dois: Laurel McKelva está a tentar avançar ao longo das atravancadas ruas de Nova Orleães em pleno Carnaval: os foliões deslocam-se aos magotes, a banda toca, os pés, os braços, os rostos agitam-se e o carro em que ela segue leva um tempo infinito a percorrer o caminho até ao lugar onde está hospedada. O pai acabou de morrer no hospital, sem motivo aparente para além de um coração enfraquecido, e a cena reveste-se de um carácter onírico, como se se tratasse de um cortejo demoníaco em que o cadáver, encerrado no espaço exíguo e sufocante de calor do automóvel é, afinal o dela própria.
“Vi um homem… vi um homem vestido de esqueleto e a mulher usava um vestido branco, tinha cobras em vez de cabelo, e levava um ramo de lírios na mão”, grita a sua histérica madrasta que segue ao seu lado, com o horror a crescer na voz e nos gestos. É o dia dos anos de Wanda Fay e ela não se conforma com o facto do seu recente e muito mais velho marido ter “decidido” passar para o outro mundo sem mais nem menos, depois de ela ter encontrado, junto dele, uma segurança e um apoio há muito desejados. Em poucas linhas, num dos momentos exuberantes deste longo conto – que, aliás, alternam com outros de grande sobriedade – Eudora Welty condensa todo o pathos de uma situação dramática e quase burlesca. “A Filha do Optimista” é, convém dizê-lo desde já, uma história sobre o processo do luto e de como este é vivido por pessoas tão diferentes como Laurel e Fay, a família desta última e os membros de uma comunidade onde o Juiz McKelva foi poderoso e influente e onde os estreitos laços, tão característicos da sociedade sulista, estão prestes a ser desfeitos ou corrompidos pela morte do seu mentor e pela ingerência de uma “estranha” (Fay) aquela que irá por, de novo, os relógios a funcionar e que, de uma forma ambígua e tortuosa, libertará finalmente Laurel.
Welty revelou que incorporou dados biográficos em “A Filha do Optimista”, o mais importante dos quais foi a semelhança entre Becky McKelva – a falecida mãe de Laurel – e a sua própria mãe que morrera pouco tempo antes. Assim, esta história sobre a forma de enfrentar e coexistir com a dor da perda, serviu à autora como catarse e como “ajuste de contas” com o passado. A cena em que Laurel se desfaz dos objectos ligados à casa, à comunidade e aos seres que povoaram a sua infância é extraordinariamente intensa e marca o princípio de uma nova era, depois de lhe ter sido permitido enterrar, de uma só vez, o pai e os fantasmas da mãe e do marido.
Na sua condição de escritora “sulista”, Welty não deixa passar os efeitos colaterais destes acontecimentos, aproveitando para enfatizar as diferenças geográficas, culturais, de classe e de “casta” que são uma marca totalmente distinta e visível em autores tão dispares como Carson McCullers e Flannery O’Connor, sem esquecer, evidentemente, William Faulkner. É a combinação extravagante de realismo e de simbolismo que fornece uma poderosa e intrincada riqueza a esta prosa, feita de frases breves, de hiatos e de acontecimentos súbitos e dramáticos: a morte inesperada do Juiz, a cena do velório durante o qual se confrontam as sensibilidades de pessoas muito diferentes entre si, a luta feroz e surda entre Laurel e Fay, as crises de histeria (quase cómicas) desta última e a presença fantasmagórica de Becky na casa que passa a ser apenas de Fay estabelecem um intricado padrão feito de oscilações de tensão, de conflito e de apaziguamento.
Ao barroquismo linguístico e alucinado de Faulkner, ao gosto pelos deserdados e enjeitados de Carson McCullers, à ironia ferozmente cruel de Flannery O’Connor, Eudora Welty, sem nunca perder de vista os seus contemporâneos e as suas raízes, contrapõe um universo próprio, sufocantemente contido mas exultante no acto de uma inesperada redenção.
A Filha do Optimista. Eudora Welty, Ed. Relógio D’Água, Lisboa, tradução de Margarida Periquito
Pieter Bruegel, o Velho: "Censo em Belém", 1566
Hoje, dia 6 de Fevereiro, 2014, às 18:30h, na Biblioteca de Cascais, vamos conversar sobre Bruegel e sobre a sua obra. O pretexto é o hilariante e inteligentíssimo romance do dramaturgo Michael Fryan, intitulado em português "Golpe de Mestre" e, em inglês, "Headlong". Bruegel viveu uma época conturbada, quando os Países Baixos pertenciam à coroa espanhola e a Inquisição fazia as suas habituais razias. Reforma, Contra-Reforma, a pesada lei dos fanáticos, chacinas e guerras, ocupações e opressão. No meio de tudo isto, a Arte florescia. Mas quantos mistérios e charadas se escondiam em cenas aparentemente banais, nos quadros do mestre Bruegel (ou Brueghel), o Velho? E qual o preço a pagar para os descobrir?
Uma bem arquitectada trama em torno de um professor de Filosofia que pensa ter descoberto um Bruegel, perdido na noite dos tempos, e a verdadeira "febre" que se apodera dele para conseguir deitar a mão ao precioso quadro, que ele considera estar a perder-se, na posse de alguém que "o não merece".
De notar que a obra de Bruegel tem suscitado um interesse inusitado por parte de romancistas e de poetas - para além de historiadores de arte e outros peritos, obviamente. Uma das mais famosas referências é o poema de W. H. Auden, escrito depois de uma visita ao Museu de Belas Artes, em Bruxelas, onde o poeta contemplou a obra de Brueghel. A sua reflexão prende-se com a ideia de que o sofrimento de alguns pode passar despercebido a muitos , que continuam placidamente nas suas tarefas rotineiras. Mas o pintor, com o seu olhar que tudo percebe e tudo revela, inclui o drama nos seus quadros, drama esse que , como toda a gente sabe, está sempre presente e se desenrola paralelamente à folia, à domesticidade, aos esforços do quotidiano.
MUSÉE DES BEAUX ARTS - W. H. Auden (1907-1973), Poeta e ensaísta americano, nascido em Inglaterra.
About suffering they were never wrong,
The Old Masters; how well they understood
Its human position; how it takes place
While someone else is eating or opening a window or just walking dully along;
How, when the aged are reverently, passionately waiting
For the miraculous birth, there always must be
Children who did not specially want it to happen, skating
On a pond at the edge of the wood:
They never forgot
That even the dreadful martyrdom must run its course
Anyhow in a corner, some untidy spot
Where the dogs go on with their doggy life and the torturer's horse
Scratches its innocent behind on a tree.
In Breughel's Icarus, for instance: how everything turns away
Quite leisurely from the disaster; the ploughman may
Have heard the splash, the forsaken cry,
But for him it was not an important failure; the sun shone
As it had to on the white legs disappearing into the green
Water; and the expensive delicate ship that must have seen
Something amazing, a boy falling out of the sky,
had somewhere to get to and sailed calmly on.
Nota: A edição portuguesa do livro está, infelizmente, esgotada. É pena: seria uma leitura bem interessante para este momento em que se discute, em Portugal, o destino de obras de arte, as vicissitudes do património artístico.