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"Raparigas de Escassos Recursos"
Engenho e arte em tempos difíceis
O Clube May of Teck, situado no centro de Londres, escapara quase incólume ao Blitz e continuava, em 1945, a servir os seus propósitos de “Conveniência Pecuniária e Protecção Social das Senhoras de Escassos Recursos com menos de trinta anos”. Era o que tinha sido estipulado nos primórdios do século XX, quando as mulheres começaram a acorrer a Londres com as suas ideias progressivas e movimentos sufragistas. No início deste romance da escocesa Muriel Spark, vivem-se os momentos finais da 2ª Grande Guerra, e a casa, depois de uns tantos vidros estilhaçados, substituídos prontamente depois de cada investida, e uma bomba por deflagrar enterrada no solo, demasiado perto mas quase invisível, está em permanente agitação. Assemelha - se a uma colmeia, uma imagem apropriada quando se trata de umas dezenas de mulheres a viverem juntas. Há entradas e saídas, risinhos e choros, roupa estendida, vestidos trocados, experiências confessadas, confidências sussurradas, visitas esperadas e desejadas. Os homens são atraídos pelo Clube como zângãos por mel porque “… poucas pessoas vivas da altura eram mais encantadoras, inventivas, comovedoras e … mais selvagens do que as raparigas de escassos recursos” (pág.11). O Clube funciona como uma sociedade em miniatura: à medida que se vai subindo de andar, mais alto as suas ocupantes se encontram numa hierarquia que se estende desde “… (as) jovens virgens, bonitas e pudicas que jamais se tornariam mulheres plenamente afirmadas, até às mandonas na casa dos vinte e muitos que se tinham afirmado demais para poderem render - se aos homens “ (pág. 32). Numa casa-de-banho há uma estreita clarabóia por onde as mais ousadas - e as mais magras - se escapam para um beiral onde intrépidos e maravilhados rapazes do prédio ao lado as encontram, por vezes tal como vieram ao mundo. (Quando os meios são escassos, o que poderá ser mais poderoso do que a nudez?)
Estas raparigas são Jane Wright, editora e poeta (um retrato bastante fiel da própria autora), Judy Redwood, a estenógrafa Dorothy Markham, cujo principal atributo é uma bem fornecida dose de frases feitas, Pauline Fox, perturbada mentalmente mas deixada em paz na sua “performance”, Selina, esbelta, sofisticada e aventureira que com um cruzar de pernas lânguido consegue todos os coupons de racionamento com que se pode sonhar e, ainda, Joanna Childe, a filha do vigário de província, amante de Poesia que dá aulas de dicção a Nancy Riddle. Cada uma das jovens é uma personagem única com as suas predilecções e anseios onde se misturam homens, roupas, empregos, um precioso e cobiçado vestido Schiaparelli, serões conviviais e truques para arranjar o que for necessário no mercado negro. Numa época de tão grande escassez, as raparigas gerem os seus parcos bens com uma invejável economia, até mesmo no que diz respeito a namorados que morrem (tantos e tão longe) a tal velocidade que é necessário substituí-los com a presteza própria de tempos de crise. Com uma história marcada pela mordacidade, Muriel Spark utiliza uma espécie de lirismo pungente, atravessando a acção com referências múltiplas a Poemas que soam como um eco por toda a casa, pela voz de Joanna, o coro da tragédia com os seus presságios funestos num mundo caótico mas alegremente despreocupado. Muriel Spark é exímia no desenho destas situações e as jovens habitantes de May of Teck assemelham-se às alunas de Miss Brodie, a mestre escola que se recusa a “ficar petrificada” no auge da sua vida e que deu o nome ao mais célebre romance da sua criadora. Foi em “Miss Jean Brodie na Flor da Idade”, publicado em 1961 que Spark criou a sua mais completa personagem, cómica, repelente e fascinante, amante de Arte e de Mussolini, a ensinar às suas pupilas que o que importa na vida não é a “segurança” mas sim a Bondade, a Verdade e a Beleza, por esta ordem.
As raparigas de escassos recursos em 1945 quando “todas as pessoas boas de Inglaterra eram pobres, salvo raras excepções”, sabem bem que não existe futuro, que a Poesia é coisa do passado - Lord Byron, Tennyson, Coleridge, Mathew Arnold, Kavafis e até mesmo Shakespeare soam de uma forma incongruente, neste cenário - e que é preciso andar para a frente, sem hesitações. Nesta história tudo está claramente distorcido pela guerra, pela escassez de meios, pela ausência de passado e pela incerteza quanto ao que está para vir.
A digna e extravagante “ Dame” Muriel Spark não foi uma estranha a este estado de coisas. Nasceu em Edimburgo e depois de um casamento com o instável Sydney Spark, que a levou até África, Rodésia, (actual Zimbabué) onde nasceu o seu filho, Robin, e de onde fugiu logo que foi possível, instalou-se em Londres para construir uma carreira. Depois de algumas vicissitudes - trabalho intenso como editora e colaboração com a espionagem britânica, uma depressão grave que coincidiu com a crise espiritual que a levou à conversão ao catolicismo – exilou-se voluntariamente em Itália onde, em 1968, conheceu Penelope Jardine com quem viveu até ao fim da vida. Mas em finais da 2ª Grande Guerra, quando se passa esta história, ela era uma entre muitas outras raparigas, a esgaravatar para sobreviver e a divertir-se, provavelmente a angariar algum pecúlio extra exactamente como Jane Wright com as suas assinaturas de “grandes escritores vivos”.
“Raparigas de Escassos Recursos” é um exercício interessante de uma autora de fartos meios que sabe como usar as referências literárias e a ironia. Tal como o seu amigo Graham Greene ( também convertido ao catolicismo) ela foi uma das escritoras mais carismáticas do pós-guerra. A amante de “A Tempestade” de Shakespeare, com o seu estilo enigmático e desconcertante, gostava de dizer que o Inferno está vazio porque todos os diabos habitam a terra, acrescentando que, da Santíssima Trindade, era o Espírito Santo que a atraía mais porque representava, realmente, o sopro da vida que ela tão bem soube descrever na sua obra.
Raparigas de Escassos Recursos
Ed. Relógio D’Água,
Tradução: Margarida Vale de Gato