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Black is Beautiful.
A Grande Dama Negra da Dança
No dia 22 de Junho de 1909 nascia em Chicago uma menina negra que, mais tarde, iria revolucionar por completo o mundo da Dança e mostrar ao mundo como a mistura exótica de culturas podia dar resultados tão excepcionais e duradouros. O pai de Katherine Dunham era um homem de negócios afro-americano, a mãe tinha sangue índio e negro e Katherine demonstrou, desde tenra idade, um fascínio muito particular pela música e pelo ritmo, bem como um interesse genuíno pelas suas raízes. Em Chicago, estudou com Ludmilla Speranzeva ( a bailarina russa da Companhia de Ballet de Moscovo) e com Mark Turbyfill ( da Opera de Chicago), tendo feito a sua estreia, num papel principal, em 1933, na Companhia de Ballet de Ruth Page. Entretanto, ainda antes de acabar o Secundário, já tinha criado uma escola privada de Dança para jovens negros e, com 15 anos, organizou um espectáculo numa Igreja Metodista com o intuito de angariar fundos para promover a arte e a educação. Inspirada pelo trabalho de antropologistas como Robert Redfield e Melville Herskovits, que apontavam como vital a sobrevivência da cultura e dos rituais africanos no “caldo civilizacional” americano, Katherine obteve uma Bolsa e ingressou na Universidade de Chicago onde se licenciou em Antropologia. Esta bagagem extra no seu percurso académico teve uma influência determinante no seu trabalho e a confluência de conhecimentos em áreas tão diversas proporcionou-lhe uma excepcional riqueza de fontes e uma enorme maturidade, tanto no seu trabalho como dançarina como no de coreógrafa,
Entre 1935 e 1936, Katherine, que tinha recebido uma nova Bolsa de pesquisa, viajou pelas Índias Ocidentais (Jamaica, Trinidad, Cuba, Haiti, Martinica) e levou a cabo um exaustivo trabalho de campo, como preparação para a sua tese de licenciatura. O seu objectivo era conhecer as danças das Caraíbas, onde as raízes africanas eram bem visíveis. Seguindo o caminho percorrido pela escritora e (também) antropóloga Zora Neale Hurston, Katherine dedicou-se especialmente às práticas de Voodoo no Haiti - mais tarde, foi considerada uma “mambo” ou sacerdotisa do culto - e quando entregou o seu trabalho, em 1939, este tinha como título “Danças do Haiti “. Acabou por ser publicado em 1946 e tornou-se uma obra de referência, tal como “Journey to Accompong” ( 1946) e “Island Possessed” (1969) . Esta experiência - Katherine comprou uma casa no Haiti onde, mais tarde, passou largas temporadas e se envolveu na sociedade e na política locais - transformou a sua visão da Dança e definiu, para o resto da vida, uma orientação muito específica no seu trabalho.
De regresso a Chicago, e para grande surpresa dos seus colegas antropólogos, Katherine optou decididamente por uma carreira dedicada à música, ao teatro, ao estudo do movimento e à educação. Num período que se estendeu até 1967, a bailarina não teve um momento de descanso. A sua carreira, que tivera o seu início na Broadway, num espectáculo, em 1930, em que ela apareceu com uma gaiola de pássaros na cabeça e a fumar um charuto, (símbolos das mulheres que vagueavam pelos portos das Caraíbas), ficou muito cedo marcada por um estilo excitantemente novo que se impôs com grande força. Katherine dançou no Ballet Négre, a primeira companhia de bailado totalmente negra nos Estados Unidos e foi seduzida por Hollywood, onde apareceu em filmes como "Stormy Weather" e "Cabin in the Sky" que coreografou em conjunto com o grande George Balanchine. Por esta altura conheceu John Pratt, um canadiano branco ( uma ligação inter racial, nesse tempo, suscitava controvérsia) que se tornou seu associado na produção dos espectáculos e com quem casou. As representações dos Dunham Dancers com cenários e guarda-roupa exuberantemente exóticos, desenhados por Pratt, produziram um impacto instantâneo e um sucesso estrondoso em toda a América. Em 1940, um crítico extasiado do New York Times escreveu o seguinte acerca de Katherine: “ O seu sentido de ritmo, a sua forma de dançar, o guarda-roupa, a coreografia a sua teatralidade, secundados por excelentes bailarinos (fazem com que) este espectáculo seja considerado um marco da música negra, de uma vez por todas. O palco vibra e ela é escaldante”.
Em 1943, de regresso a Nova Iorque e sob a batuta do famoso empresário Sol Hurok - que fez um seguro às pernas da bailarina de 1 milhão de dólares - a Companhia pôs em palco a Tropical Review que foi um grande sucesso e se manteve em cena durante meses, num total de 156 representações a que se seguiu uma tournée pelos Estados Unidos e Canadá.
Em 1947 foram para o México, a que se seguiu a Europa, onde se tornaram a sensação do momento - em Paris foram especial e entusiasticamente aplaudidos por Maurice Chevalier, Bernard Berenson e os antropólogos Alfred Metraux e Claude Lévi-Strauss - a Austrália e a Argentina, onde Eva Péron alojou Dunham no palácio presidencial.
Desde os anos quarenta, quando foi inaugurada a primeira das várias Dunham School of Dance and Theatre e durante os vinte anos seguintes Katherine produziu centenas de espectáculos e coreografias, cruzando ballet moderno com clássico, ritmos tradicionais africanos, das Caraíbas e da América do Sul com Jazz e incorporando rituais de iniciação e outras cerimónias que ela estudara durante os seus trabalhos como antropóloga. Nas suas escolas os curricula incluíam, entre outras disciplinas, Antropologia, Psicologia, Filosofia, Língua, Lógica, Introdução à Ciência, História do Teatro, Ballet, Folclore das Caraíbas, etc.
No início dos anos sessenta, inspirada pelos movimentos dos direitos civis e revoltada com as condições nos guetos de East St. Louis, Katherine, juntamente com o marido, fundou o
Performing Arts Training Center (PATC) e o Dynamic Museum em East St. Louis cujas actividades se centravam na educação de jovens em risco. Estes lugares, vocacionados para captar uma comunidade problemática, atraíam bailarinos e bailarinas muito novos a quem era ensinada uma sofisticada técnica que incluía o desenvolvimento de movimentos baseados na flexibilidade do torso e da coluna vertebral e na rotação do pélvis “desligado” dos membros inferiores, numa estratégia de movimento poli rítmico, o que incutia orgulho e gosto pela História dos afro-americanos e uma compreensão profunda das raízes da comunidade.
Em 1962, a Dunham Company fez a sua última representação na Broadway, em Nova Iorque e, em 1967, depois de uma derradeira aparição no célebre Apollo Theatre no Harlem, Katherine resolveu retirar-se de cena, em 1967, depois de ter colaborado com as Orquestras Sinfónicas de São Francisco e Los Angeles e de se ter tornado a primeira afro-americana a coreografar espectáculos para a Metropolitan Opera de Nova Iorque e de ter ensinado movimento a actores como Marlon Brando e James Dean.
No entanto, o seu trabalho não terminou e uma das suas melhores produções posteriores foi para a ópera de Scott Joplin, Treemonisha, em 1972.
Até morrer, em Maio de 2006, Katherine demonstrou uma energia e carácter consideráveis. Em 1992, já com 82 anos, entrou em greve da fome, para protestar contra as deportações de refugiados haitianos levadas a cabo pelo governo norte-americano. Toda a sua arte, vivacidade, energia, dignidade e força foram bem documentados pelo coreógrafo Alvin Ailey que, em 1987, evocou a sua vida e o seu trabalho em "The Magic of Katherine Dunham"
Quem a conheceu diz que ela possuía uma beleza extraordinária, mesmo na velhice, e era muito reservada e calma, fora dos palcos. Mas quando dançava gostava de interpretar os papéis de sedutora fatal, de sereia sensual e perigosa, de mulher possuída pelo frenesim do sexo. Apreciava os contrastes, a variedade e as emoções fortes, mantendo sempre uma atitude de enorme profissionalismo e de técnica de dança rigorosa. Quando lhe perguntaram como poderia definir a importância do seu trabalho, Katherine respondeu: “ Sempre me pareceu que numa análise final, não é a investigação e a anotação do material recolhido in loco que são importantes mas sim uma evidência prática e tangível ( que acontece) na sua utilização e tradução para a criação.”
Chamaram a Katherine “ a antropóloga que fazia rodopiar as ancas” , “ a intérprete por excelência dos ritmos primitivos da dança ”. Ao longo da sua vida, ela, que foi também jornalista, professora, realizadora de cinema e escritora, continuou a lutar pela igualdade racial, tendo dedicado muita da sua energia e talento a causas nobres do âmbito social e artístico, afirmando que a Dança está profundamente ligada a tudo o que é fundamental, na sociedade. É considerada como pioneira na utilização de temas étnicos incorporados na dança, foi galardoada com prémios, doutoramentos e homenagens de todo o mundo mas o seu trabalho como formadora foi o que lhe granjeou a devoção e admiração de inúmeros alunos que continuam, até hoje, o seu trabalho. A maior parte dos coreógrafos importantes da geração seguinte - tais como Pearl Primus, Geoffrey Holder, Jean-Leon Destiné, Charles Moore e Maya Deren, entre outros - foram membros da Dunham Company e fortemente influenciados pela sua forma de ver o mundo.
O grande jornalista Walter Cronkite fez a seguinte descrição de Katherine: “uma coreógrafa com o olhar de uma antropóloga e a alma de uma artista.”