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por Oldfox, em 10.09.15

AS LUZES de LEONOR

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Mais Brilhante que Mil Sóis.

 

Primeiro a História: Maria Teresa Horta levou treze anos a pesquisar, a coligir informação e a escrever “As Luzes de Leonor”, uma monumental e arrebatada obra que gira em torno da vida e da personalidade de Leonor de Almeida, Condessa de Oyenhausen e Marquesa de Alorna, figura maior da nossa História e da nossa Cultura. Leonor foi encerrada aos oito anos, juntamente com a irmã e a mãe, no Convento de Chelas e o pai, também preso a mando do Marquês de Pombal no seguimento do processo dos Távora, passou anos sem ver a família. A avó, Marquesa de Távora, foi executada, tal como outros membros da família, amigos e até criados. Leonor só saiu de Chelas dezoito anos mais tarde, após a morte de D. José, quando D. Maria – que mais tarde será sua madrinha de casamento – devolveu a liberdade aos presos políticos. Leonor aproveitou os anos de reclusão para estudar, para fortalecer o carácter, para escrever poesia. Desde cedo atraiu inúmeros admiradores, fascinados com a sua erudição, beleza e independência de espírito. Recebia no convento ( à grade) poetas e pensadores –  Correia Garção, Filinto Elíseo (que lhe deu o nome de Alcipe), Joana Isabel Forjaz, Teresa de Mello Breyner – saiu em liberdade aos 27 anos, casou-se, teve filhos, atravessou a Europa de lés a lés, privou com soberanos e soberanas, foi amada e cortejada por homens e mulheres, aconselhou e recebeu as confidências de figuras destacadas do seu tempo, levou a cabo delicadas missões diplomáticas, apaixonou-se, escreveu; assistiu à Revolução francesa e ao avanço de Napoleão sobre a Europa, experimentou o exílio, regressou a Portugal; Camilo Castelo Branco não escondeu a admiração por ela, Francisco Joaquim Bingre recordou a “grande Filósofa e grande poetisa lírica, mulher de abalizados talentos e de óptimas ideias liberais, cuja casa frequentei algumas vezes com outros poetas do meu tempo.”

Maria Teresa Horta apodera-se desta figura estonteante e não será por acaso que começa a sua obra com uma citação de Virgínia Woolf, excerto de uma carta que a escritora britânica escreveu à sua musa Vita Sackville-West, a propósito do romance “Orlando. Uma Biografia”. Tal como o herói/heroína da tonitruante e encantatória saga de Woolf, também Leonor, pela mão da autora, atravessa o tempo, o espaço, os géneros e as ideias, os sentimentos e as razões, as tendências e as modas, para nos arrastar na vertigem da sua existência, fresca e audaz, sábia e veemente. A Ciência ensinou-nos que a fita caprichosa do nosso ADN se desenrola, geração após geração, numa alucinante viagem que continua ad infinitum e Leonor de Almeida está bem viva nestas páginas, resgatada do tempo e do esquecimento pela sua descendente, a autora, que não se limita a descrever factos mas parece, isso sim, ter ocupado o espaço físico e mental da sua ilustre parente. Acompanhamo-la, e a todos que em torno dela gravitam, desde a infância até à idade avançada, seguimo-la nos estudos, nas múltiplas leitura, nas viagens atribuladas, no êxtase dos prazeres carnais, nos esforços diplomáticos, nos dramas familiares, no fulgor dos salões e das cortes (Viena, Paris, Londres, Lisboa). Ouvimos os cascos dos cavalos, o roçagar dos vestidos, os suspiros apaixonados, os gritos nos partos, os murmúrios conspiratórios; chegam-nos com intensidade os odores dos corpos, dos cozinhados, das ruas, das estradas, dos perfumes, das velas, das alcovas. E observamos a evolução e construção de uma personalidade única, livre, independente de espírito, resistente à adversidade, filha, mãe, mulher, amante, poeta, intelectual. Maria Teresa Horta vai desenrolando a narrativa em elipses, sem particular rigor cronológico ( a ligação de Leonor com a avó, a Marquesa de Távora aparece, pontualmente em entradas com os títulos “Raízes” e “Memória”), voltando sempre a Leonor, ( o íman) recriando com total abandono e franqueza os arroubos das “coisas da carne”, desse “invólucro mortal” de que fala Shakespeare, que englobam as delícias do erotismo e os incómodos muito humanos dos fluidos e excreções.

Leonor, Marquesa de Alorna, formou o seu espírito e a sua vontade na leitura dos Clássicos, nos ensinamentos de Rousseau, Voltaire, Diderot, Espinoza, Locke, Bayle e Newton, foi testemunha privilegiada e interessada do fim de uma era e do nascimento do mundo moderno, com as luzes da Razão a esmorecerem no negrume do Terror e no saque da Europa, por Napoleão. A ascensão do Romantismo – que tão prejudicial foi para as mulheres - levou-a a apreciar Goethe e Schiller mas não chegou a contaminá-la nos seus aspectos mais negativos.

Com “As Luzes de Leonor”, Maria Teresa Horta constrói uma obra grandiosa, na qual as figuras históricas (por exemplo, quão diferente é “esta” Carlota Joaquina da imagem que Raul Brandão lhe atribui, em “El-Rei Junot”) se cruzam com as que emergem da imaginação da escritora, em cenários delicadamente pormenorizados, em ambientes profusamente documentados, em emoções e sentimentos que só uma grande escritora sabe como recriar.   

Para além do aspecto formal mais marcante desta obra, isto é, a subversão total dos géneros tradicionais - romance histórico, biografia, memórias, poesia, género epistolar (tão característico do século XVIII) até autobiografia – há, em toda a narrativa, uma contínua tensão entre contrários, entre masculino e feminino, entre razão e  emoção, entre verdade e embuste, entre vida e morte, entre liberdade e reclusão, entre atracção e repulsa, entre luxúria e castidade, entre o amor-paixão e o amor-amizade. Leonor ergue-se, magnífica e majestosa, do vórtice destes conflitos mortais, desafiando o despotismo patriarcal consubstanciado em figuras como Sebastião de Carvalho e Melo e Pina Manique, o primeiro, apostado em ser um homem das “Luzes” que usa a razão para reconstruir um reino mas que mergulha nas trevas da barbárie com a execução dos Távora e com as suas maquinações e Pina Manique, o sinistro intendente da Polícia e espião que persegue Leonor até à morte. Esta, ao contrário dos seus inimigos, (“Não me apaziguo” escreve ela no Diário), embora “encarcerada” – num convento, num corpo de mulher, em roupagens femininas – experimenta sem temor o excesso das suas “luzes” no desejo e na vontade.  

“As Luzes de Leonor” é, evidentemente um livro “feminista” no sentido em que Maria Teresa Horta - uma escritora, poeta e pensadora sempre atenta - revela a importância de Leonor e de outras mulheres mantidas na obscuridade. Mas é, essencialmente, uma obra universal que transcende géneros, fronteiras, correntes ou movimentos literários. É um livro sobre Portugal e sobre a nossa cultura, sobre a Europa e sobre os abalos da História. É, ainda, uma lição de bem escrever e um relato provocante e ousado que levanta questões de agora e de todos os tempos: como resistir à tirania? Qual a importância da educação, da cultura, do exercício do pensamento? De que modo se poderá (ou não) conciliar a emoção com a razão? De que formas se reveste o amor em todas as idades? Como vencer as barreiras da moral instituída, das diferenças sociais e culturais, das limitações de género? Como ser-se mulher ( ou homem) em toda a plenitude?

As Luzes de Leonor, Maria Teresa Horta, Ed. Dom Quixote. 

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publicado às 12:13


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