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O Evangelho segundo Marilynne Robinson
"Lila" é o quarto romance da escritora americana Marilynne Robinson e o mais recente da trilogia - que compreende "Gilead" (2004) e "Home", (2008) - onde a autora explora a relação de amizade que une profundamente dois pastores evangélicos – John Ames e Jack Boughton – e as suas respectivas famílias, cujos destinos estão intimamente ligados, no ambiente fechado das difíceis relações parentais e filiais, nos desgostos e alegrias que acarretam. Tanto a acção, centrada numa pequena cidade imaginária no noroeste dos Estados Unidos – não muito diferente da terra natal de Robinson - como as personagens transitam de livro para livro sem ordem cronológica. Na realidade, "Lila" é uma prequela de "Gilead" e reencontramos, aqui, John Ames que, com toda a sua bonomia e amor pela vida, conhece bem a dor da perda: a primeira mulher e filha morreram há muito e a sua vida solitária, dedicada aos membros da sua congregação, segue o curso monótono dos dias, até que, já com 67 anos, é irresistivelmente atraído por Lila, uma jovem que vive sozinha numa cabana em ruínas e, que, tal como ele, é uma "especialista" em solidão e despojamento.
Lila tinha apenas cinco anos quando Doll, uma mulher com uma mancha no rosto, uma vagabunda corajosa e livre – e, também, uma assassina – a encontrou num alpendre à chuva e pegou nela, levando-a para longe da família que a ignorava e negligenciava. Doll protegeu sempre Lila, ferozmente, e ambas calcorreiam a América, faça chuva ou sol, à deriva e ao sabor dos ventos, juntando-se esporadicamente ao bando de Doane e Arthur, uma espécie de troupe de saltimbancos que só se detém quando é necessário. O cenário, tão dramaticamente capturado nas fotografias de Walker Evans e de Dorothea Lange, é o da grande depressão na América, com os fantasmas da fome, do frio e da doença sempre a persegui-los. Doll e Lila, duas almas gémeas, duas sombras na paisagem, ligadas pelo desejo da fuga, da liberdade e da solidão, são como ecos das personagens do primeiro e fulgurante romance de Robinson, "Housekeeping" (Laços de Família).
Depois do medo, vencidas as resistências, Lila, que se sabe rude e ignorante mas que quer conhecer o significado das palavras – copia sozinha e laboriosamente, trechos da Bíblia – casa com Ames, não sem este a ter baptizado. E esse baptismo à beira rio, com a água a escorrer sobre Lila e um peixe-gato a debater-se, agonizando na erva, ao sol, é uma das cenas mais comoventes do romance, aquela em que o conflito brutal que se desenrola permanentemente na cabeça de Lila parece, temporariamente, apaziguado. A sua permanente desconfiança em relação a uma possível felicidade – isto é, amor, conforto, protecção, companheirismo – é momentaneamente esquecida ao sentir a mão de Ames pousada na sua cabeça, nessa bênção que "queima" e também a faz chorar. A intimidade, pela qual tanto anseia e que rejeita com o mesmo grau de ferocidade, provoca nela um misto de profunda exaltação e cruel sofrimento, uma vez que, ao abdicar da solidão, sabe que está a aceitar algo que desconhece. A inquietação de Lila não acaba com o casamento – tem sempre dinheiro guardado para apanhar a camioneta e fugir – mas a maternidade transforma-a e será a esse filho que Ames escreve, no fim da vida, a longa carta que surge em "Gilead".
Há qualquer coisa de ferino e de primordial na personagem de Lila, reminiscente do ideal de Rousseau, cujo mito do "bom selvagem" vai ao encontro da concepção de que o contacto estreito com a natureza funciona como antídoto para uma sociedade em desagregamento. A diferença reside no facto de a "inocência" de Lila ser permanentemente desafiada, tanto pelo seu próprio intelecto como pelo confronto manso, mas determinado, com os outros. A sua luta silenciosa e interior tem a dimensão épica própria das heroínas que vencem as dificuldades de uma infância de abandono e privação, de uma juventude desenraizada e perigosa e de uma idade adulta na qual permanece o rasto de profundos danos emocionais.
Robinson é claramente influenciada por William Faulkner que recorreu profusamente à Bíblia, na sua obra, acentuando tanto o lado luminoso, redentor e inspirador como os aspectos mais sombrios, de castigo e perdição. (Repare-se que Gilead funciona como a Yoknapatawpha de Faulkner, um lugar para onde converge e onde se centra toda a acção.)
"Lila" é uma obra sobre a redenção e sobre os desertos ou caminhos de espinhos que é necessário atravessar para alcançar a suprema felicidade, se por um acaso, ela existir, algures. Robinson é incomparável na descrição das maravilhas do mundo imanente – em cada detalhe da matéria, da luz, das texturas, dos movimentos – enaltecendo a sua insuperável beleza perversamente tingida por um perene sentimento de luto e de perda.
"Lila" é, ainda, um romance com uma prosa inspirada e luminosa de cariz profundamente cristão – referências bíblicas (aqui, ao Livro de Ezequiel), a luta entre o bem e o Mal, entre a luz e as trevas, entre a inocência e a corrupção, entre o amor e o ódio, entre a solidão e a pertença – que nos remete claramente para o universo violento e severo da católica Flannery O'Connor, embora Robinson não faça uso da tremenda e incomparável comicidade negra e fulgurante, que caracteriza a obra da escritora sulista.
Lila, Marilynne Robinson, tradução de Maria do Carmo Figueira, editorial Presença.
Artigo publicado no jornal Público, Lisboa.