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por Oldfox, em 30.08.16

Uma Biografia de Mary Shelley

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Retrato de mary Shelley por Richard Rothwell 

O Melhor dos Tempos, o Pior dos Tempos

 

Mary Wollstonecraft Godwin (Shelley) nasceu em Londres, a 30 de Agosto de 1797, carregando consigo o peso avassalador dos seus ilustres progenitores, respectivamente Mary Woollstonecraft, famosíssima feminista e escritora, e William Godwin, filósofo político e intelectual de renome. Órfã de mãe aos onze dias de vida e a crescer numa família nada convencional, Mary tornou-se, de moto próprio, uma personalidade complexa e rica, merecedora de um olhar aprofundado e crítico.

Parece quase impossível que, aos dezanove anos, uma mulher, no início do século XIX, tenha escrito uma das obras mais emblemáticas de toda a Literatura. Em 1814, depois da precipitada fuga de Inglaterra com Percy Shelley (que era casado), os apaixonados instalaram-se na Suíça onde, como é do conhecimento geral, a ideia para um livro de terror germinou durante um serão, numa roda de amigos, que incluía Lord Byron e o seu médico John Polidori. Enquanto uma formidável tempestade se abatia sobre o Lago Genebra, "Frankenstein ou o Novo Prometeu", ganhava vida nas mãos febris de Mary. O romance, que conta a história de um médico que cria uma monstruosa criatura a partir de pedaços de corpos, conjuga o horror do "romance gótico" com o mito da criação e da maternidade e inclui referências aos avanços da Ciência de então, às experiências no âmbito da electricidade/galvanismo, da medicina forense e dos estudos de psicanálise. "Frankenstein", publicado finalmente em 1818, entrou naturalmente na corrente popular com múltiplas e posteriores adaptações cinematográficas (a de 1931, realizada por James Whale, com Boris Karloff, foi decisiva) e uma vasta apropriação por parte de outros meios de entretenimento,

A relação de Mary com Percy Shelley  – o vagabundo sempre inquieto, genial poeta, rebelde, anarquista, ateu, adepto da não-violência, vegetariano, e defensor acérrimo das classes desfavorecidas – é uma das mais dramáticas e apaixonadamente "românticas" desse tempo de arrebatamento, de auto-destruição e de idealismo revolucionário. Shelley era, para Mary, o companheiro que procurava, um homem capaz de a acompanhar na sua permanente sede intelectual. William Godwin, apesar das suas ideias liberais, desaprovou violentamente a relação da filha, obrigando-os a uma permanente vagabundagem que arrastou, também, membros das respectivas famílias, amigos, e uma sucessão de tragédias. A lealdade e devoção de Mary em relação a Shelley, (casaram finalmente em 1816), nem sempre foi correspondida. Tinham uma relação complexa, marcada por infidelidades e pela morte prematura de pelo menos três dos quatro filhos. Mary passou os anos de casada permanentemente grávida e em viagem, experimentando uma sucessão de dramas – os suicídios da meia-irmã de Mary, Fanny, e o da primeira mulher de Percy, Harriet, um aborto quase fatal que só não a vitimou porque Percy a mergulhou em água gelada para estancar a hemorragia – e permanentes dificuldades financeiras.

Quando finalmente regressou a Londres, depois da última "aventura italiana" a sua condição não podia ser mais devastadora. Shelley afogara-se nas águas do Golfo di Spezia, deixando-a viúva, pobre e destituída, abatida moral e fisicamente, com um filho de quatro anos. O ideal romântico de uma vida livre e aventurosa, dedicada à leitura e à escrita, ao amor, à amizade e ao companheirismo, desvanecia-se no rescaldo da tragédia. Na pira ateada na praia por Lord Byron, onde se consumiu o corpo martirizado do autor de Epipsychidion, (essa meditação magnífica sobre a natureza do amor absoluto), ficavam as cinzas de uma época, de uma forma de existência, de uma utopia que se transformara em pesadelo.

E embora "Frankenstein" continue a ser a sua obra mais conhecida, convém lembrar que Mary foi também autora de mais seis romances, uma novela, dramas mitológicos, contos, artigos, relatos de viagem e estudos biográficos. Na extraordinária obra "The Last Man", (1826) onde recria a figura de Percy Shelley e de outros amigos, Mary convoca um final apocalíptico para o universo, antevê as pragas modernas como a Sida, questiona os ideais políticos do Romantismo e desafia as premissas avançadas pelos seus contemporâneos, alicerçadas numa revolução idílica dos costumes mas corrompidas pelas fraquezas inerentes ao ser humano

A complicada existência de Mary Shelley, que inclui segredos como a sua relação com Jane Williams e o seu progressivo conservadorismo, ao arrepio da imagem que estabelecera para si própria, tem sido objecto de inúmeras pesquisas: o estudo de Muriel Spark (1951), reeditado em 2013 e a biografia de Miranda Seymour (2001) continuam a ser boas referências. No entanto, este livro de Cathy Bernheim, alicerçado numa vasta documentação que inclui correspondência, diários e outras menções importantes é um óptimo contributo para um conhecimento mais aprofundado desta personagem invulgar, visionária, mulher firme e independente, capaz de exercer o seu direito de escritora e de viver da escrita. Em "The Last Man" Mary recria, pela voz desesperada de Lionel, a essência mais pura da solidão humana: "Sob o sol do meio-dia ou à luz da lua, eu era o único ser com aparência humana, e o único que podia articular pensamentos; e, quando eu dormia, dia e noite eram espectáculos que ninguém via". Esta imagem desoladora corrobora a visão de uma mulher que acompanhou e experimentou as mais nobres e românticas aspirações, para depois compreender, com uma lucidez devastadora, a derrocada das ideias, o fim do amor e da amizade e a perpétua ameaça da morte, que, para ela, chegou finalmente, como resultado de uma outra "praga" – o cancro – em 1851.

 

Mary Shelley. Uma Biografia da Autora de Frankenstein, Cathy Bernheim, tradução José Alfaro, ed. Antígona, 5 *

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publicado às 14:38


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