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por Oldfox, em 30.11.16

Helen Macdonald - "A, de Açor"

Mulher em ruínas

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O pesar que sentimos quando perdemos alguém que amamos é algo comum a quase todos os seres vivos mas cada um de nós experimenta o luto à sua maneira. Escrever é uma das formas de encarar a dor, como fez Simone de Beauvoir em "Une mort très douce" – sobre a doença e morte da mãe – e, mais recentemente, Joan Didion com "O Ano do Pensamento Mágico", relato pungente dos seus dias depois do desaparecimento súbito do marido, John Gregory Dunne. Estes dois poderosos exemplos, entre muitos outros, quando comparados entre si, não retiram a força e a singularidade à obra da escritora, poeta e historiadora inglesa Helen Macdonald que, em "A de Açor" ("H is for Hawk") arrasta quem a lê para o universo bizarro, quase se poderia dizer "gótico", no qual mergulhou depois da morte do pai, o conhecido fotógrafo Alisdair Macdonald, um homem que lhe proporcionou uma perspectiva única sobre o mundo. Helen é uma "mulher em (e nas) ruínas" de um passado feliz e repleto de memórias: tinha cinco anos quando o pai a levou a Stonehenge e conservou viva a sensação de tocar as pedras milenares; depois, foram as caminhadas pelos campos, nessa paisagem propícia a lendas, em manhãs geladas e enevoadas. Embrenhavam-se nas florestas para avistarem pássaros, aves de rapina e aviões – o pai fotografava enquanto ela se escondia nos cerros e valados, para observar melhor – e ela experimentou a sensação exultante da pertença e da cumplicidade, enquanto aprendia a arte da falcoaria, esse passatempo aristocrático e tremendamente exigente cujas origens se perdem na noite dos tempos.

A morte do pai mergulhou Helen num universo paralelo de "estranhos episódios em que o mundo se tornava irreconhecível " (pág. 147). Adquirir um açor – uma fêmea bebé a que dá o nome de Mabel – levá-lo para casa e treiná-lo parece-lhe o único passo que, no seu estado, faz algum sentido. As aves de presa, embora mantenham uma proximidade ancestral com os seres humanos nunca foram domesticadas. Estes seres alados de uma beleza indizível são difíceis de manter e de criar e obrigam a uma intimidade perigosa e inquietante, um estado de alerta permanente, uma espécie de situação-limite que pode levar os seus possíveis "donos" à loucura, como parece ter acontecido com T.H. White, autor de livros baseados nas lendas arturianas e de "The Goshawk" – relato minucioso do adestramento da sua ave – cuja história a autora acompanha, numa mistura de fascínio e repugnância. A verdadeira tortura a que White submeteu a sua ave paira como uma nuvem agoirenta ao longo de todo o ansioso treinamento de Mabel, e reflecte os estados de espírito contraditórios de Helen que vai consultando obras e contando histórias, as dos falcoeiros da antiga Pérsia e da Mongólia, a do adestramento pelos nobres na Idade Média, inspirado pela prática dos árabes, e a do apogeu desta arte no século XVI. Trata-se de um contínuo exercício de desejo - domar um predador feroz - que a faz sentir-se parte de uma corrente no tempo, como faz notar nesta frase: "Elas (as aves) são em certo sentido imortais. As que são largadas hoje são idênticas às de há cinco mil anos". (pág. 138). Esse desejo de perpetuar a memória, essa "imortalidade", passa por uma misantropia extrema, por uma solidão mitigada apenas pelo amor - e ódio - à ave bizarra, fiel e infiel, amiga e inimiga, familiar e estranha que a acompanha ao longo desse ano.

A lenta aprendizagem de Mabel - comer, não comer, engordar emagrecer, soltar, prender, castigar, recompensar - corresponde à de Helen, numa penosa, receosa e por vezes delirante passagem da escuridão para a luz. Tal como o açor começa por ser enclausurado em casa, velado pelo espesso caparão, também a autora se isola e retrai num mundo de silêncio e obscuridade. A pouco e pouco, tentativamente, com infinitos cuidados, leva a ave – e ela própria – a entrar em contacto com o mundo, "lá fora". Em terrenos urbanos e rurais, Helen tem as mesmas reacções que o seu açor: perplexidade, receio, deslumbramento, apreensão, desnorteamento, exaltação. Através da sua vigília com Mabel, é capaz de deslizar para um tempo antigo, o que lhes é comum, o da Velha Inglaterra de gigantes enterrados e de animais selvagens, de campos e florestas que escaparam ao movimento destruidor da industrialização.

 "A de Açor" é um livro de memórias – excessivo, incisivo como uma lâmina – um sofisticado guia de auto-ajuda, um manual de treinamento de aves de rapina, um exercício brutal de conhecimento, uma confissão despudorada do medo da morte e da vida. É, também, uma obra que cabe perfeitamente no chamado "nature-writing ", à maneira de John James Audubon, de Ralph Waldo Emerson ou de Rachel Carson, colocando, de uma forma pertinente, a eterna questão: até onde podem ir os laços entre os seres humanos e os animais, como lidar e compreender o fascínio mútuo entre o selvagem e o doméstico, entre a brutalidade da sobrevivência e o conforto da domesticidade.

 

"A de Açor", Helen Macdonald, tradução de Ana Falcão Bastos, edição Lua de Papel, 5*

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publicado às 12:57


por Oldfox, em 22.11.16

Aldous Huxley e "As Portas da Percepção"

 

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A Plenitude e o Infinito 

A 22 de Novembro de 1963, a notícia do assassinato do presidente John F. Kennedy tomou a imprensa de assalto, açambarcando as atenções do mundo inteiro. Por essa razão, a morte de Aldous Huxley, ocorrida no mesmo dia, passou quase despercebida. Huxley, nascido em Inglaterra em 1894, vivia na Califórnia, para onde se mudara em 1937, depois de estadas em França e Itália, onde escreveu parte da sua obra de ficção. Nessa manhã deslizou para a inconsciência depois da mulher, Laura, lhe ter injectado, a seu pedido, 100 microgramas de LSD, pondo fim a um longo sofrimento, causado por um cancro na laringe. O autor do clássico "Admirável Mundo Novo" (1932) conhecia bem os efeitos das drogas que consumia regularmente, desde os anos 30. Os seus biógrafos referem um jantar em Berlim, em Outubro de 1930, em que Huxley conheceu o ocultista Aleister Crowley – sim, o mesmo que impressionou Fernando Pessoa – o qual, supostamente, o iniciou no consumo de peiote, utilizado em certas culturas para celebrações religiosas. Mas foi em Maio de 1953 que o psiquiatra Hunphrey Osmond lhe aconselhou a mescalina – os estudos desta substância foram levadas a cabo, principalmente, pelo farmacologista Ludwig Lewin e pelo psicanalista Havelock Ellis – e, mais tarde, o LSD. 

A tomada da primeira dose deste ácido, a 24 Dezembro de 1955, foi deliberadamente experimental e cuidadosamente documentada, gravada em áudio e filmada, dando origem aos textos onde Huxley dá conta dos resultados da sua investigação cuja finalidade era a abertura de novas e inimagináveis vias do conhecimento.

Esta particular edição de"As Portas da Percepção" contém, assim, para além das observações de Huxley relativas à sua experiência mais íntima, o ensaio complementar intitulado "O Céu e o Inferno" e oito apêndices onde o escritor refere, entre outros temas, a importância da prática de exercícios respiratórios de ioga, do canto e da meditação, a variação de estímulos para a mente, o poder político do fausto como forma de "deslumbrar" as massas, a interferência da tecnologia moderna como forma de banalização da vida quotidiana, a luz na pintura de Georges de La Tour, a função encantatória das obras de Van Gogh, Vuillard, Delacroix e Géricault – entre outros – a visão dos esquizofrénicos e a ironia de Thomas Carlyle quando refere a especificidade robótica dos seres humanos. Huxley explora, ainda, o vasto território que se esconde nos recônditos da nossa mente e do qual nos alheamos a todo o instante e tece considerações em torno da solidão de que todos padecemos, uma vez que "… a mente é um lugar de características únicas".

Ao ingerir LSD, Huxley esperava ter visões – semelhantes às dos místicos – mas o que aconteceu foi bem diferente. A sua percepção do mundo agudizou-se enquanto o seu "eu" transitava para o que ele chama de "os antípodas da mente". Comparando a sua experiência à dos artistas no momento da criação, verificou com espanto o esplendor dos objectos – as pernas de uma cadeira, o drapejar do tecido das suas calças, as cores flamejantes das flores, os livros nas estantes "cravejados de jóias" – o desinteresse pela interacção com os outros seres humanos e uma libertação exaltante.

Huxley foi um escritor eficiente, um homem corajoso e nada convencional, um dos mais brilhantes intelectuais do seu tempo, um humanista veemente e um pacifista convicto – escreveu uma Enciclopédia do Pacifismo e um ensaio sobre Pacifismo e Filosofia. Oriundo de uma família de notáveis cientistas e pensadores, frequentou assiduamente Garsington Manor, a célebre casa de Lady Ottoline Morrell, onde se juntavam os membros do Bloomsbury Group que Huxley não se coibiu de ridicularizar no seu romance "Crome Yellow". (1921). Acompanhou de perto e analisou a evolução dos países e das sociedades que emergiram da IIª Grande Guerra e a forma como se debatiam com grandes dificuldades. A ameaça nuclear e a Guerra Fria alimentavam todas as paranóias e o rescaldo da acção de tiranos como Hitler e Estaline não podia ser mais devastador. As experiências com alucinogéneos, as visões de outros mundos e as antevisões apocalípticas tomaram conta da imaginação de uma geração de autores. H.G. Wells (1866-1946), George Orwell (1903-1950), Wiiliam Golding (1911-1993) Ray Bradbury (1920-2011) tinham presenciado (e nalguns casos vivido) o caos e a descida aos infernos. Perante a descrença na raça humana, apressaram-se a relatar, nas suas obras, o tenebroso estilhaçar de utopias morais, sociais e políticas e a revelar a paisagem desolada de um mundo vazio de sentimentos e triturado por máquinas, cuja salvação estaria num universo alternativo, ( noutro "eu" ou noutra galáxia) ou numa ciência dirigida para o ser humano, ciência essa que abriria as "portas da percepção", um termo roubado ao poeta William Blake e contido nas páginas dessa obra-prima que é "O Casamento do Céu e do Inferno" (1790). 

Nos últimos anos da sua vida Huxley dedicou-se à parapsicologia e ao misticismo filosófico, participando activamente nos movimentos da contra-cultura nos Estados Unidos, que incluíam a paixão pela banda desenhada, pela ficção científica e pelo consumo experimental de drogas que acompanhavam (e complementavam) os avanços tecnológicos, a corrida espacial russa e americana e outras experiências no campo médico, cada vez mais audazes. O homem que disse que a felicidade é como a cocaína, "algo que se consome como um produto auxiliar enquanto se faz outra coisa", nunca parou de analisar, de procurar, de dar-nos conta das suas visões e iluminações.

 

As Portas da Percepção, Aldous Huxley. Tradução Paulo de Faria. Prefácio de J.G. Ballard, ed. Antígona, 4 *

 

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publicado às 17:44


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