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por Oldfox, em 01.12.16

Conan Doyle e Sherlock Holmes

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Elementar , meu caro Watson!

 

Em Londres, num dia aprazível de 1889, J.M. Stoddart, o editor da revista Lippincott’s, convidou para almoçar dois escritores que ele tinha em grande conta, Oscar Wilde e Arthur Conan Doyle. Na altura, proliferavam as publicações como a sua e a competição era feroz. Por isso, Stoddart tencionava convencer os dois homens sentados à sua frente a escreverem algo de diferente mas que contivesse os ingredientes que faziam furor na época: mistérios, loucura, crimes, ambientes assustadores, suspense, traições, segredos inconfessáveis e acções depravadas a coberto de uma respeitabilidade de fachada. Wilde não hesitou e lançou-se na produção do famoso “Retrato de Dorian Gray”. Conan Doyle resolveu repescar a personagem de Sherlock Holmes que criara, com alguma displicência, em 1887 para a novela “A Study in Scarlet”  e escreveu uma nova aventura “The Sign of Four” ( 1890) - seguido de “As Aventuras de Sherlock Holmes” - onde surgia novamente a personagem de um homem excêntrico, dado a crises de depressão e melancolia, aliviadas pelo consumo de ópio e cocaína, um maníaco-depressivo de inteligência invulgar, empenhado em combater o mal, obcecado pela solução de crimes e pela exposição de vícios de uma sociedade em tumulto ( a vitoriana) que procurava desesperadamente o equilíbrio e a respeitabilidade. Foi assim que Doyle estabeleceu uma longa e por vezes conflituosa relação com a sua mais do que famosa personagem, criando um dos fenómenos mais duradouros, complexos e fascinantes da história da Literatura.

 Sherlock Holmes

 Quem é, realmente, Sherlock Holmes, o dono da “ mente com o raciocínio mais perfeito que o mundo jamais conheceu “? Embora exerça um eterno fascínio, não seria propriamente a companhia ideal para uma mulher. Misantropo, sexista, embora atraente para o sexo oposto e sempre pronto para ir em socorro de alguma donzela ou mulher interessante em perigo, prefere nitidamente a companhia masculina - principalmente a do seu fiel e discreto companheiro Dr Watson - naquela fronteira por vezes ténue entre o espaço da virilidade mais misógina (dos clubes só para homens, dos lugares onde só entram homens com o seu famoso espírito de corpo) e a homossexualidade reprimida. A verdade é que Sherlock Holmes se tornou uma figura que adquiriu vida própria, independentemente do seu criador. Deu origem a um adjectivo, a um método de investigação, a um estilo de vida. Ainda hoje existem pessoas que acreditam na sua existência real e há quem ainda lhe escreva para a famosa morada de Baker Street.

Se, no princípio da existência do personagem, Conan Doyle mostrou a grande influência da figura de "dandy" excêntrico de Oscar Wilde, ao longo das centenas de “aventuras” do mais famoso detective do mundo, o seu criador  abandonou gradualmente as características iniciais, como o uso de drogas, os hábitos noctívagos, o desdém por convenções, e enveredou por caminhos bem mais conservadores.

Embora independente em relação às forças policiais - que na sua época ganharam cada vez mais importância em cidades que cresciam a ritmo acelerado, com índices cada vez mais alarmantes de criminalidade - Sherlock Holmes  é, na realidade, um agente esforçado e dedicado na manutenção da ordem social num universo caótico e pleno de ciladas. Os seus poderes de dedução, de racionalidade, de calma e ponderação contribuem para a manutenção de uma ordem própria e de uma estrutura hierárquica “civilizada”, na qual o crime, nomeadamente o assassínio é considerado uma aberração. A paixão de Holmes pela metodologia e pela classificação detalhada de tudo, a sua forma de sistemática inventariação do que está relacionado com cada crime - recorde-se, como exemplo,  as 140 variedades de cinzas de várias marcas de tabaco de cigarro, cachimbo ou charuto que ele pacientemente cataloga - faz dele um precursor dos métodos de investigação ligados à Ciência como estes surgem nas contemporâneas séries televisivas, como C.S. I. (Crime Scene Investigation)

 

Tal como o próprio Doyle, Sherlock Holmes tem um fraquinho pela realeza. Embora a rainha Vitória seja referida apenas uma vez - em “A Aventura dos Planos de Bruce-Partington”, na qual recupera documentos secretos da Marinha e regressa de uma visita a “uma certa senhora de grande majestade ” com um novo alfinete de gravata ostensivamente cravejado por uma enorme esmeralda - a soberana  está sempre presente, naquilo que representa. Não nos podemos esquecer que Holmes é o espelho de uma sociedade em ascensão, industrializada, orgulhosa dos seus feitos, burguesa e imperialista que se revê na rainha. Tal como James Bond, Holmes, com toda a sua liberdade e (alguma) soberba, está constantemente ao serviço de Sua Majestade e do seu País.

O mais interessante em relação a esta personagem puramente literária é que o seu criador não lhe tinha qualquer afecto. Sabemos que eram as aventuras de Holmes que davam fama e dinheiro ao seu autor. Este, que não partilhava a admiração dos seus leitores pela sua “criatura “, como se sabe, tentou acabar com ela, em “The Final Problem” (1893), colocando o terrível Moriarty a cair de um penhasco, aparentemente engalfinhado num abraço mortal com Holmes. Mas os protestos foram tantos - milhares de leitores cancelaram as suas assinaturas da revista onde Doyle publicava as suas peças - que, apesar de “estar tão enjoado de Sherlock quanto de paté “, Doyle viu-se obrigado a dar uma nova vida ao seu herói, um pouco como acontece hoje em dia nas séries televisivas de grande impacto mediático. Na realidade, Holmes foi acompanhando a vida do seu criador, mudando de personalidade e de hábitos, à medida dos caprichos e das incertezas de Doyle e , também, da sua própria alteração de comportamento através da vida.

 

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***

É um dado adquirido que Doyle se inspirou fortemente na figura do detective Dupin, inventado pelo precursor do romance policial que foi Edgar Allan Poe Mas  Sherlock Holmes e todas as histórias em que ele participa foram, sem sombra de dúvida, uma invenção totalmente diferente , com uma técnica que, até hoje, não foi igualada. Uma típica aventura começa com Holmes e Watson na sua casa no nº 22B de Baker Street.  Os dois amigos partilham o apartamento e têm ambos um passado vago, mais ou menos trágico, um casamento falhado no caso de Watson, o vício da cocaína e fortes depressões em Holmes, aventuras em conjunto e, finalmente, a cómoda existência de dois homens de espírito, rodeados de livros e bem tratados pela diligente e discreta senhora Hudson.

Sherlock, para além de químico, é versado em quase tudo, conseguindo descortinar um rosto sob o mais complexo disfarce, descobrindo pistas na forma das orelhas, das tatuagens, dos passos ou de qualquer outro traço de uma pessoa, através da criptografia, da datação de documentos e de uma infinidade de outras referências.

Convém lembrar, ainda, que Sherlock  Holmes foi a primeira figura de ficção a ser admitida como membro da Royal Society of Chemistry. Não escapou, tão pouco, a um título honorífico por ter sido “o primeiro detective a usar substâncias químicas como um meio elementar para a descoberta de crimes”.

Doyle produziu 56  histórias e 4 romances cheias de violência e terríveis incidentes com Holmes e Watson. Mas, apesar do detective nem sempre conseguir prevenir o crime ou punir o criminoso, é capaz de nos dar uma explicação completa e cabal dos acontecimentos. Watson, o prosaico companheiro de Holmes afirma várias vezes que tudo se deve ao intelecto infalível do amigo que nunca se deixa arrastar por emoções. No entanto, estas aventuras estão saturadas de sentimento, uma vez que o grande investigador, tal como o seu criador, foi um homem apaixonadamente empenhado em perceber e vencer o Mal, por todas as formas possíveis. 

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publicado às 15:52


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