O livro de hoje: "Os Passos da Cruz", uma novela do poeta português, Nuno Júdice (Ed. Dom Quixote). Imprescindível, encantatório, intrigante.
O autor segue os passos, literalmente de Antónia Margarida de Castelo Branco, uma portuguesa obscura que, em 1670, casou com um homem "muito nobre, muito pobre e muito terrível", uma combinação explosiva que ditaria a violência sobre a mulher e o posterior recolhimento desta, num convento. O mais interessante é que, no Mosteiro de Santos, em Lisboa, já livre do jugo conjugal, Antónia Margarida escreveu uma Autobiografia, um maná de informações sobre o percurso desta mulher, o seu tempo e os (maus) modos de uma sociedade em polvorosa, quando a corte dava os seus maus exemplos e a população vivia permanentemente à beira de catástrofes. A curiosidade em relação a essa época - o barroco com a sua "confusão dos sentimentos e das emoções; a retórica que impõe a decisão dos conflitos, criando outros conflitos no interior da razão que os resolve... (pág. 11) "- leva o autor por ínvios caminhos em busca de um tempo perdido e nunca totalmente reencontrado. O escritor viaja até uma aldeia com o estranho nome de Lamarosa, para os lados de Coruche, onde Antónia Margarida viveu algum tempo. A partir deste percurso - estradas secundárias, planícies desertas, um funeral na praça, um café quase deserto, aparições misteriosas - vai desenvolvendo uma meditação sobre o Tempo e sobre o seu movimento, ora circular ora pendular. Apoiando-se nas figuras sucessivas de mulheres que vão surgindo - da fantasmagórica Antónia Margarida a Rosa, a antiga amiga, clandestina e sinuosa, passando por uma historiadora sensual e provocadora - a narrativa avança entre passado e presente, entre a melancolia e a exaltação dos sentidos, entre a morte e a vida, entre a ternura e a violência. Lamarosa é como um "buraco negro" onde se cai para penetrar em dimensões/outras, poço de sensações e mistérios. É claro que, para lá da trama propriamente dita, o que mais conta aqui é a linguagem, encantatória e sedutora, a lembrar Henry James e um certo desvario próprio da literatura fantástica. Uma das imagens recorrentes - aqui e na vasta obra poética do autor - é a do vidro, do cristal, simultaneamente revelador na sua transparência e enganador quando se estilhaça ou quando a luz aí se refracta . Cito: " Tal como, através do cristal, o olhar não encontra obstáculos para atingir o centro da própria transparência do objecto, e parece que passa para o outro lado numa ilusão óptica de transcendência, também os corpos ganham essa imateralidade onde é mais importante a sua função do que a sua essência". Creio que este extracto do primeiro texto, chamado "Memória e Esquecimento", poderá servir de introdução para o resto, para o desvendar da árdua tarefa de traçar caminhos na estrada ensombrada da memória, neste elegante e poético exercício que questiona a História e os seus actores.
Nota: Repare-se a referência a Fernando Pessoa que no seu "Passos da Cruz" ( 14 Sonetos) escreveu, a certa altura:
"Ó tocadora de harpa, se eu beijasse
Teu gesto, sem beijar as tuas mãos!,
E, beijando-o, descesse p'los desvãos
Do sonho, até que enfim eu o encontrasse."
(excerto do Soneto IV)
Uma boa pista para a leitura deste livro.