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Nota: este texto serviu de apresentação de "Cadernos Italianos" de Eduardo Pitta, ed. Tinta-da-China. Em Livraria Almedina, Lisboa, 20 Fevereiro, 2013
Recomenda-se, também, a leitura das Memórias do autor, "Um Rapaz a Arder" (admirável) , ed. Quetzal, Lisboa, 2013
“ A Vida é um tecido de histórias contadas”, escreveu – e bem – o filósofo Paul Ricoeur, referindo-se ao facto de serem essas histórias contadas por nós e sobre nós próprios – reais ou ficcionadas – que constroem uma “identidade narrativa” que assegura a permanência do “eu” ao longo de todas as transformações. Na falta de uma substância identitária – de que nos serve um BI se não tivermos histórias para contar? – cada um de nós constrói a sua identidade, (re)contando-se.
Pedro Mexia refere tudo isto no prefácio que abre caminho para a leitura destes Cadernos, revelando a personalidade do autor e a forma absolutamente única como, em tão poucas páginas, nos arrasta para Itália, dando-nos a ver o seu esplendor – e outras vistas mais obscuras – através do olhar, dos sentidos e das emoções.
Eduardo Pitta é um viajante habituado a longas distâncias e a experiências muito diversas. Mas, para além isso, é um atento observador, senhor de um sofisticado sentido de humor e, ainda, alguém com uma ternura e generosidade muito especiais, o que nos permite – a nós leitores, ávidos de aventura – partilhar com ele, tanto as mais efusivas e deslumbrantes experiências como certos e desagradáveis contratempos. Com a sua escrita luminosa e directa o prazer é certo e, pelo menos no que me diz respeito, agradeço-lhe ter-me levado a (re)visitar, de uma forma muito particular, lugares pelos quais anseio sempre e dos quais sinto a falta.
Permitam-me uma ligeira divagação: a Itália – Roma, Veneza sem dúvida e também Florença – mesmo antes de ser Itália, fazia parte do roteiro daquele que foi chamado o "Grand Tour". Desde o século XVII que toda a gente com um mínimo de interesse pela Cultura e pelo conhecimento – ou simplesmente filhos varões com apelidos sonantes que queriam fazer jus às suas casas e deslumbrar os seus concidadãos – empreendia essa mítica viagem sem a qual ninguém podia ser considerado (a) – no século XIX foi a vez das mulheres se aventurarem – pouco mais do que um simples troglodita. A intenção era a de aprender tanto Arte como História, tanto Literatura como Música, sem esquecer os costumes, as línguas e as arriscadas aventuras eróticas cujo "sabor" era sempre mais apetecível longe dos lugares familiares. O Grand Tour era uma espécie de universidade global, de escola prática da vida, sendo indispensável a descoberta das raízes da civilização ocidental, a que não faltavam experiências gastronómicas, provas de vinhos e outras bebidas, bem como um verdadeiro mergulho na arte de bem viver, no hedonismo mais desenfreado e até num certo perigo que servia para aumentar os níveis de adrenalina. Basta reler “A Viagem a Itália” de Goethe para perceber quão importantes eram os contactos feitos durante o Tour – essa convivência com os bels esprits de cada época – e como a contemplação do Belo – veja-se o "efeito Stendhal" – podia mudar a existência de cada um.
John Locke, sempre preocupado com a educação, e defensor da aprendizagem a partir dos sentidos despertados pelo exterior, isto é por aquilo que nos é dado contemplar, apreciar, sentir na pele, tocar, referiu longamente a importância desta peregrinação que não seria religiosa mas sim intelectual, sensorial e destinada ao enriquecimento pessoal.
Eduardo Pitta recupera todo este espírito, toda esta tradição, porque tem a apurada capacidade para ver, para sentir, para experimentar e, principalmente, para descrever, para contar.
(Quando em Veneza, no Harry’s Bar, diz que “se sente que estamos envoltos numa aura de privilégio”- pág. 28 - o que ele quer dizer é absolutamente claro e remete-nos para a história de um lugar que mantém, ainda, à força da revisitação da memória, os seus ilustres fantasmas.)
As referências ao Florian, com uma história ainda mais longa, fazem-nos recordar imediatamente os expatriados ingleses e americanos – a lista é longa – bem como o ágil e muito veneziano Casanova que certamente por lá parou antes ou depois de se ter evadido da cadeia, não muito longe dali – um episódio recordado no livro – bem como Proust, Dickens e, evidentemente, Lord Byron. Aliás, Byron – que escreveu em Veneza o 4º canto de "Childe Harold" – viveu nessa cidade certas aventuras amorosas como a paixão por Marianna Segati, rapidamente substituída por Margarita Cogni que acabou por se atirar ao Canal numa noite em que discutiu com o poeta e este resolveu ficar a dormir na gôndola pessoal. Shelley e Keats, expatriaram-se em Itália e, mais tarde, Henry James que, por exemplo em "The Aspern Papers", nos remete para uma Veneza muito especial, protagonizou mais um incidente muito peculiar e também trágico, nesta mesma cidade, quando a escritora e sua companheira Constance Fenimore Woolson se suicidou, atirando-se ao Canal.
Se refiro tudo isto – e as histórias do Eduardo são muito mais emocionantes e pessoais, muito mais aliciantes e interessantes - é porque já Lord Byron se queixava dos odiosos “turistas” que, como muito bem diz Eduardo Pitta, constituem uma turba que salta de lugar em lugar a correr para tirarem uma fotografia junto às preciosidades para as quais nem olham.
Fiquei particularmente impressionada com a breve nota – o Eduardo faz-nos ver o mundo em duas ou três palavras – em que refere, ” A estupidez perante a Ponte dos Suspiros – pag. 56. Na verdade, quem é que terá prazer em tirar fotografias, em beijar-se e confundir os supostos suspiros de amor com os lamentos de dor e terror dos condenados que por ali passavam, a caminho dos calabouços da Inquisição?
Eduardo é magistral nestes apontamentos, vai directo ao assunto e mostra um desdém absolutamente justificado em relação às hordas de bárbaros que passam pelos palazzos, pelas galerias, museus e igrejas com uma displicência feroz e alarve ignorância.
Eduardo é um viajante sofisticado e nada sentimental e o toque de pontual nostalgia só engrandece a narrativa. Tão pouco é um explorador do “exótico” – exótico no pior sentido, claro – ou um basbaque perante os esplendores que se lhe deparam a cada passo. Eduardo é um “connaisseur”, alguém que, para nosso deleite, sabe a diferença entre um Tiepolo e um Dali, entre uma refeição romana e a chamada comida italiana, que sabe apreciar um Montepulciano d’ Abruzzo e que leu “A História da Minha Vida” de Giacomo Casanova, depois de ter, apropriadamente, comprado o grosso volume em Veneza.
“ Somos peregrinos em busca de Itália” escreveu Goethe num dos seus poemas, depois do regresso à Alemanha. E Auden falou da Viagem de Goethe para ilustrar a feroz necessidade de procura que não se restringe a uma simples e desencantada descrição de lugares e de coisas.
Com esta leitura é possível seguir os passos do autor pelas ruas, vielas, canais e becos de Roma e Veneza, constatando, a cada instante, a sua delicadeza, bom gosto e inteligência. Impossível deixar de referir a sua belíssima ligação com o Jorge, a forma tão espontânea e magnífica como o coloca na narrativa. Jorge, que não se deixa impressionar por fazer 51 anos em Veneza, que bebe uma “bica” em pé, ao balcão, num restaurante de bairro na mesma cidade, que mantém a sua calma olímpica perante as contrariedades da viagem. É comovente que tenham ido passar a lua-de-mel a Roma, que a menina do hotel os tenha posto num “quarto com Vista” – ah como me lembrei da pobre Lucy Honeychurch em Florença, do livro de Forster – que o Eduardo tenha ficado triste por não ter conseguido marcar um jantar especialíssimo num certo restaurante – ele que diz, e muito bem, que “As refeições …são um assunto demasiado sério para que o possamos deixar ao arbítrio da ignorância, dos impulsos ou do “ logo se vê”.
Com Cadernos Italianos recupera-se o sentido da viagem, o prazer da descoberta, da contemplação, da emoção. Revive-se o gosto dos gelados, dos vinhos, o odor dos canais, a chuva de Veneza, o calor de Roma, o olhar negro do gondoleiro – com o seu chapéu à deus Hermes – provável descendente do que levou Thomas Mann na peugada do seu Tadzio. É o reacender da sensação de pertença desse mundo arrebatador, culto, refinado, que nos moldou. E todo este esplendor remete-nos para o sentimento de perda e de desertificação intelectual e mental, a que estamos agora sujeitos. Os cafés de George Steiner já não fazem sentido numa Europa à míngua, desorientada e empobrecida. Veja-se a Grécia que se tornou um estigma e não um destino do conhecimento, a Itália em tumulto, a Espanha e Portugal de joelhos, sem esperança nem sentido.
É que estamos a viver uma espécie de holocausto cultural – se me permitem a expressão – uma hecatombe civilizacional de que será difícil recuperarmos. Só obras como esta nos poderão (re)direccionar para o que realmente importa.