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por Oldfox, em 26.08.13

Alain de Botton: a felicidade, modo de usar

Explicou como poderíamos salvar-nos a ler Proust; mostrou como sabemos tão pouco e como desejamos, muitas vezes, o impossível; encaminhou-nos para o consolo da Filosofia; desmantelou o conceito de "estatuto" que nos persegue; levou-nos a viajar de uma forma intensa e a amar ainda mais; escandalosamente, afirma que a felicidade é possível. Alain de Botton, desdenhado por académicos mas firmemente activo na sua busca filosófica e metafísica, foi entrevistado por mim, em Lisboa, há uma meia dúzia de anos. Repesquei a peça porque me parece interessante para um início de semana, ainda no Verão..

 

Alain de Botton é um escritor e pensador peculiar. Nasceu na Suiça, é de origem judia (sefardita) mas foi educado em Inglaterra, a partir dos oito anos. As suas recordações das escolas – Harrow e Cambridge– não são famosas. Cedo se deu conta de que o que lhe ensinavam não servia para a vida que desejava ter. Por isso, resolveu escrever obras onde traça novos caminhos para a felicidade e para a realização pessoal, em moldes pouco comuns.Os livros que já publicou – ““Como Proust pode Salvar-lhe a vida”, “A Consolação da Filosofia”, “A Arte de Viajar”, entre outros – poderão ser catalogados como “manuais de auto-ajuda” mas Botton prefere chamar-lhes “Guias”, uma vez que neles não enuncia fórmulas infalíveis nem promete a felicidade eterna. Interessa-lhe, sobretudo, a ideia de “sabedoria”, um conceito muito antigo e quase tabu na nossa sociedade que,como sabemos, se afastou claramente do pensamento crítico e da reflexão. Usando, como base, o método dos filósofos da Grécia Antiga, Botton propõe-nos, de uma forma inteligente e acessível, uma contínua especulação sobre tudo o que nos rodeia, sobre o que sentimos e sobre a forma como agimos.

Para além de escritor, de Botton já produziu vários programas televisivos para o Channel 4, em Inglaterra e é co-fundador – com Neil Crombie – das Séneca Productions. Esta entrevista aconteceu a propósito da publicação em Portugal, pela Dom Quixote, do livro “Status. Ansiedade”.

A combinação destes dois conceitos – a procura incessante, na sociedade contemporânea, de um “estatuto” que está intimamente ligado à ideia de “ansiedade”, a qual, por sua vez, provoca “stress” e infelicidade – foi tema de uma conversa, quando o autor visitou Lisboa.

 

 

Helena Vasconcelos: Neste livro, foi sua intenção mostrar como, na sociedade contemporânea, sabemos muitas coisas mas que o significado delas nos escapa?

Alain de Botton: Exactamente. Por exemplo, nas Universidades as pessoas aprendem muito mas, na realidade, o verdadeiro conhecimento passa-lhes ao largo.

 

H.V. Considera a aprendizagem como um excesso de informação acumulada que não é, na maior parte dos casos, “processada” ?

A.B. Sim. A Internet é um exemplo: contém toneladas de informação e não sabemos o que fazer com ela. Existe um desafio mais encorajador: pensar porque é que somos muito bons a acumular informação, a acumular dinheiro mas menos bons no que respeita ao que podemos fazer com o conhecimento, com o dinheiro, etc.…É uma questão a que a Universidade não dá resposta. As pessoas só estudam durante um período muito curto das suas vidase o resto do tempo trabalham duramente. O auto-conhecimento e o conhecimento do mundo tornam-se muito limitados.


H.V. Neste livro ironiza a propósito daquilo a que chamamos “estatuto”, algo que muita gente procura como se equivalesse à felicidade. É uma crítica contundente. 

A.B. Sim. Acho que é uma ingenuidade pensar que podemos ser felizes permanentemente. Quando nos reportamos à Idade Média, por exemplo, constatamos quea vida era miserável. As pessoas consolavam-se pensando na vida depois da morte. Hoje, vivemos num extremo oposto, numa sociedade muito optimista em que assuntos dolorosos como a morte, a doença, a idade, o divórcio, os dramas pessoais não são mencionados. No entanto, tudo isso faz parte da experiência humana. Torna-se bastante cruel chegar ao fim do dia e falar só da felicidade, quando ela não é uma realidade. Talvez não haja solução para muitos dos nossos problemas mas há “consolação”, uma palavra mais modesta mas que me agrada especialmente.

 

H.V. Propõe um mundo melhor, desmascarando certos mitos como o da “nobreza do trabalho”, uma “religião” que segundo diz foi introduzida pelos americanos e que tem sido muito aplicada nos dois últimos séculos?

A.B. Creio que o conhecimento pode ajudar a desmascarar os mitos e a compreender aquilo a que chamo a genealogia das ideias, o porquê, por exemplo, da nossa “adoração” pelo trabalho, o porquê do facto de, quando duas pessoas se encontram, perguntarem uma à outra, “ em que é que trabalha”, como se esse facto definisse um indivíduo. Por que razão não se pergunta “qual é a sua terra”? Por isso questiono-me: o que originou esta dinâmica, de onde vem este poder? É como a instituição do casamento. O que é? De onde veio?Para que serve? Quem é que a deseja? Qual a sua história? Não me refiro á História tradicional mas à história, ao serviço do presente. É uma conversa em aberto que, para mim, para a minha vida privada, se revela extremamente útil.

 

H.V. Propõe-se substituir um tipo de conhecimento, interior - como a clássica ida ao psicanalista - ou exterior - como o que se aprende directamente da televisão - por uma forma mais dinâmica de conhecimento? 

A.B. Não sei. O meu livro é muito pessoal no sentido em que não creio que a religião possa ser uma resposta. Não existe uma solução permanente para o estado de ansiedade de que falo neste livro mas interessa-me compreendê-lo. Não forneço soluções – isso seria uma violação de intenções – mas tento “desvendar”. Há pessoas que me criticam por eu dar apenas sugestões, mas trata-se de uma questão dinâmica e instável, permanentemente em aberto. 

 

H.V. No entanto, faz um diagnóstico dos males da nossa sociedade e aponta alguns “remédios” … 

A.B. Sim. Mas trata-se de algo selectivo, quase uma brincadeira: muitos dos “conselhos” são paradoxais para os nossos tempos. Por exemplo, eu digo que devemos olhar a morte defrente. Uma das soluções mais simples para o estado de ansiedade é compreender quea vida é muito curta. À partida parece muito desagradável e triste. Na iconografia tradicional colocava-se um crânio em cima de uma mesa, obrigando as pessoas a pensarem ,” vou acabar assim” e isso não devia deprimir-nos mas sim ajudar a libertar-nos de problemas como “o que é que os outros pensam de nós”, “quando é que serei promovido”, etc. Os seres humanos são pequenos e frágeis. É um pensamento perturbador mas, ao mesmo tempo, muito simpático.

 

H.V. Porque constitui o reflexo da nossa humanidade?

A.B. Evidentemente. Este pensamento desapareceu porque vivemos em cidades, rodeados pelos média que nos dão a ideia de que somos importantes, de que este ou aquele é “muito” importante porque tem dinheiro ou visibilidade. Mas se pensarmos nos antigos egípcios, nos antigos romanos, nos grandes heróis e que deles só resta pó, isso ajuda-nos a relativizar tudo.  

 

H.V. Será que o “estado de ansiedade” também está relacionado com a tão falada perda de fé? 

A.B. É preciso questionar o conceito de fé. Estará ligado à religião? As religiões são muitas vezes fundadas na ideia de que o ser humano não é muito importante. Há sempre algo maior, que é Deus, algo fora de nós próprios. Em quase todas as sociedades se adora um Deus, um espírito, a natureza, um pedaço de madeira, o Santo Graal, qualquer coisa para lá do humano, algo mais forte, mais poderoso, mais misterioso. Tem tudo a ver com a ideia de reverência, que é o centro das religiões. Agora, reverenciamos outros seres humanos: os astronautas, os desportistas. Tudo isso leva, de novo, a um estado de ansiedade, uma vez que a maior parte das pessoas acham que “não estão à altura”. Na Grécia Antiga havia heróis e deuses que se divertiam e até se importunavam uns aos outros. E havia a ideia do destino e da sorte. Agora, já não acreditamos nisso. Se eu disser que escrevi um livro mau e que foi um azar, ninguém me leva a sério. Se alguém perde o emprego e diz que foi pouca sorte as pessoas pensam: “O que é que ele terá feito, de errado?” O mesmo se passa ao contrário: se alguém tem um negócio que lhe corre bem e diz que foi sorte as pessoas pensam: “ não foi sorte, ele trabalhou muito, tinha bons contactos, etc.”. Acreditamos que cada pessoa é inteiramente responsável pelo o que é e pelo o que lhe acontece. É evidente que, em certa medida, é verdade mas creio que é, também, muito mais complicado.

 

H.V. No entanto, essa ideia é recente, vem do século XVIII?

A.B. Sim, tem 200 anos. É bonito pensar num mundo flexível, em que as pessoas se reinventam, não interessando quem são os pais, ou o lugar de onde se vêm. Mas também pode ser uma ideia cruel e quando os políticos, da esquerda e da direita, afirmam querer construir uma sociedade em que cada pessoa pode tornar-se nisto e naquilo, a verdade é que sempre haverá hierarquias, com gente que manda e gente que obedece.Como dizer aos de baixo, na pirâmide, que só estão aí porque são estúpidos ou porque não têm a energia necessária? Muita gente acha que pode chegar um dia a ser como o Bill Gates. É muito pouco provável mas as pessoas sonham com isso.

 

H.V. Não será esse o preço a pagar pela liberdade individual e pelo sistema democrático?

A.B. Sim, mas o que se passa hoje em dia é que as pessoas estão muito sós face ao seu destino, com as suas histórias pessoais, o que as leva ao desespero, à depressão, aos suicídios, etc.

 

H.V. De onde nos vem, então, esta absoluta certezade que temos de ser belos, amados, importantes?

A.B. As crianças são amadas e por isso nós todos sabemos o que é ser-se muito especial,em determinada altura. Claro que existem crianças maltratadas mas a maior parte das pessoas tem um sentimento de omnipotência que lhe fica da infância.

 

H.V. As crianças são o centro das atenções mas crescem e deixam de ser o foco dessas mesmas preocupações e cuidados. Não será isso, também, uma causa da angústia?

A.B. Sim. As crianças são tratadas como bonecas e depois apercebem-se que os pais têm de trabalhar muito e que projectam nelas uma espécie de fantasia. Vejo jovens que possuem uma linguagem de auto-estima e que acham que tudo o que fazem é bom e bonito e, depois, chegam ao mercado de trabalho e são confrontados com uma realidade diferente. Esta atitude reflecte uma ausência de reflexão, face à realidade.

 

H.V. Acha que esta procura incessante de “Status” poderá ser uma forma de combate ao medo?

A.B. Em certa medida é verdade. Mas isso funciona em termos de instinto e não a nível psicológico.

 

H.V. Fala muito no conceito de auto-estima, de identidade. É o que primeiro se retira aos prisioneiros, ou a quem se quer humilhar ou destruir. Acha que essa ideia só se constrói com conhecimento?

A.B. Sim. Troça-se, muitas vezes, da ideia de auto-estima. Mas, no seu melhor, é uma afirmação de independência de pensamento. Falo de capacidade crítica, humanista, do conhecimento. É a base das lições de Sócrates. É parar e dizer, “espera um pouco, todaa gente diz que “isto” é normal mas pode não ser”. Foi o que aconteceu em relação ao feminismo, por exemplo: alguém que disse: “ talvez não seja normal que as mulheres sejam tratadas desta maneira”.

 

H.V. Para si, a ideia de “status” é, portanto, uma falácia?

A.B. Haverá sempre a ideia de “estatuto”. Por isso é que falo da meritocracia numa sociedade mais justa. É uma utopia pensar-se que todas as pessoas boas estão no topo e as más, não. O Bem e o Mal são muito complicados e já não vivemos numa era cristã que definia esses conceitos, baseados em “mistérios”, com toda a injustiça que, também, acarretavam.  

 

H.V. A sua proposta tem a ver, portanto, com uma nova forma de perseguir a felicidade, baseada numa relação constante com o mundo e com os outros?

A.B. Como escritor, penso muitas vezes que os livros perderam o seu poder, através dos tempos. Um dia, quando for mais velho, quero começar uma Universidade a que chamarei a Universidade da Vida, onde se irá estudar… a sabedoria.  

 

Publicado em revista ELLE portuguesa

 

 

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publicado às 16:03


2 comentários

De Anónimo a 27.08.2013 às 22:03

Uma conversa brilhante. Uma entrevista extraordinária, interessantíssima, questões de uma inteligência a toda a prova, questões não meras questões, dessas previsíveis, dessas formatadas, imediatas. As perguntas com que Helena Vasconcelos interpela A, de Botton, só por si, valem toda a leitura desta entrevista. tendo em conta que A. de Botton é também um personagem especialmente culto.

Sim, claro, a vida ensina tudo.

Cristina Carvalho

De Oldfox a 28.08.2013 às 11:46

Obrigada pelo comentário. Não sei se a "vida" ensina tudo - há quem viva muito tempo e não aprenda nada. Mas não há dúvida que é a grande escola, se acompanhada por um pensamento crítico sistemático. Ora para apurar a interrogação, a dúvida e a livre escolha é necessária uma aprendizagem - com a História , com a Filosofia, com a Ciência. Será, talvez, um processo global, a que cada indivíduo deveria ter acesso.

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