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por Oldfox, em 18.02.14

Eudora Welty e "A Filha do Optimista"

A preparar a próxima sessão da Comunidade de Leitores na Culturgest. A obra em discussão será "A Filha do Optimista" (Prémio Pulitzer, 1973) de Eudora Welty, escritora americana sulista. Eudora nasceu em Jackson, Mississippi, a 13 de Abril,1909 e morreu em 2001. A partir da publicação do seu célebre conto "Morte de Um Caixeiro Viajante" (1936) afirmou-se como uma das autoras chave, inscrita por direito próprio no cânone da literatura norte-americana, embora a sua proverbial discrição a tivesse mantido afastada de circuitos mais mediáticos.

 

O texto que se segue foi publicado no Suplemento Ípsilon do Jornal PÚBLICO.

 

Relógios parados

 

“A Filha do Optimista” começou por ser um conto que apareceu na revista New Yorker, em 1969, e só em 1972, depois de a autora ter revisto e alargado o texto, foi publicado como romance. A estranheza desta narrativa em que quase nada acontece – e que arrebatou um prémio Pulitzer em 1973 – é um milagre de concisão e de contenção minimalista, tendo sido considerada pelos críticos como o trabalho mais subtil de Eudora Welty, a escritora sulista nascida em Jackson, Mississippi, em 1909.  

No início, Laurel McKelva, uma viúva sem filhos com cerca de quarenta anos, viaja de Chicago, onde vive, até Nova Orleães para se encontrar com o pai que está nessa cidade para consultar um oftalmologista, um velho amigo que lhe diagnostica um deslocamento da retina e aconselha uma simples operação. Com o Juiz McKelva está a sua nova e esfusiante mulher, impaciente com as consultas e com as demoras, ávida de diversão e de acção. Laurel tem dificuldade em compreender o casamento do pai com a vulgar, espalhafatosa e impertinente Wanda Fay, tão diferente da sua própria mãe, mas acompanha ternamente o enfermo, à cabeceira do seu leito de hospital, lendo para ele e tentando recuperar a cumplicidade de outrora.

Mudança de acção, capítulo dois: Laurel McKelva está a tentar avançar ao longo das atravancadas ruas de Nova Orleães em pleno Carnaval: os foliões deslocam-se aos magotes, a banda toca, os pés, os braços, os rostos agitam-se e o carro em que ela segue leva um tempo infinito a percorrer o caminho até ao lugar onde está hospedada. O pai acabou de morrer no hospital, sem motivo aparente para além de um coração enfraquecido, e a cena reveste-se de um carácter onírico, como se se tratasse de um cortejo demoníaco em que o cadáver, encerrado no espaço exíguo e sufocante de calor do automóvel é, afinal o dela própria.

“Vi um homem… vi um homem vestido de esqueleto e a mulher usava um vestido branco, tinha cobras em vez de cabelo, e levava um ramo de lírios na mão”, grita a sua histérica madrasta que segue ao seu lado, com o horror a crescer na voz e nos gestos. É o dia dos anos de Wanda Fay e ela não se conforma com o facto do seu recente e muito mais velho marido ter “decidido” passar para o outro mundo sem mais nem menos, depois de ela ter encontrado, junto dele, uma segurança e um apoio há muito desejados. Em poucas linhas, num dos momentos exuberantes deste longo conto – que, aliás, alternam com outros de grande sobriedade – Eudora Welty condensa todo o pathos de uma situação dramática e quase burlesca. “A Filha do Optimista” é, convém dizê-lo desde já, uma história sobre o processo do luto e de como este é vivido por pessoas tão diferentes como Laurel e Fay, a família desta última e os membros de uma comunidade onde o Juiz McKelva foi poderoso e influente e onde os estreitos laços, tão característicos da sociedade sulista, estão prestes a ser desfeitos ou corrompidos pela morte do seu mentor e pela ingerência de uma “estranha” (Fay) aquela que irá por, de novo, os relógios a funcionar e que, de uma forma ambígua e tortuosa, libertará finalmente Laurel.

Welty revelou que incorporou dados biográficos em “A Filha do Optimista”, o mais importante dos quais foi a semelhança entre Becky McKelva – a falecida mãe de Laurel – e a sua própria mãe que morrera pouco tempo antes. Assim, esta história sobre a forma de enfrentar e coexistir com a dor da perda, serviu à autora como catarse e como “ajuste de contas” com o passado. A cena em que Laurel se desfaz dos objectos ligados à casa, à comunidade e aos seres que povoaram a sua infância é extraordinariamente intensa e marca o princípio de uma nova era, depois de lhe ter sido permitido enterrar, de uma só vez, o pai e os fantasmas da mãe e do marido.

Na sua condição de escritora “sulista”, Welty não deixa passar os efeitos colaterais destes acontecimentos, aproveitando para enfatizar as diferenças geográficas, culturais, de classe e de “casta” que são uma marca totalmente distinta e visível em autores tão dispares como Carson McCullers e Flannery O’Connor, sem esquecer, evidentemente, William Faulkner. É a combinação extravagante de realismo e de simbolismo que fornece uma poderosa e intrincada riqueza a esta prosa, feita de frases breves, de hiatos e de acontecimentos súbitos e dramáticos: a morte inesperada do Juiz, a cena do velório durante o qual se confrontam as sensibilidades de pessoas muito diferentes entre si, a luta feroz e surda entre Laurel e Fay, as crises de histeria (quase cómicas) desta última e a presença fantasmagórica de Becky na casa que passa a ser apenas de Fay estabelecem um intricado padrão feito de oscilações de tensão, de conflito e de apaziguamento.

Ao barroquismo linguístico e alucinado de Faulkner, ao gosto pelos deserdados e enjeitados de Carson McCullers, à ironia ferozmente cruel de Flannery O’Connor, Eudora Welty, sem nunca perder de vista os seus contemporâneos e as suas raízes, contrapõe um universo próprio, sufocantemente contido mas exultante no acto de uma inesperada redenção.

A Filha do Optimista. Eudora Welty, Ed. Relógio D’Água, Lisboa, tradução de Margarida Periquito

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publicado às 16:54


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