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John Banville acaba de ser galardoado com o Prémio Príncipe das Astúrias das Letras, 2014. Nascido na Irlanda em 1945, John Banville é provavelmente um dos escritores mais importantes da atualidade, com uma obra vasta e premiada, nomeadamente com o Man Booker Prize - para o romance The Sea, 2005. O seu mais recente romance LUZ ANTIGA, foi publicado em Portugal, em 2013, pela Porto Editora.
O meu texto sobre Luz Antiga - publicado em suplemento Ípsilon do jornal Público.
A Invenção do Passado
A primeira imagem em “Luz Antiga” – uma jovem mulher numa bicicleta a deslizar no ar límpido de um Abril de antanho, a saia levantada a revelar uma nudez concupiscente, perante o olhar ávido de um rapaz – é, de acordo com o narrador, Alexander Cleave, uma recordação pouco fiável, quase de certeza inventada, e uma espécie de álibi sensorial precoce. Mais tarde, Alex verá nitidamente a arrecadação pegada à cozinha de Celia Gray, onde numa cama de campismo e ao lado de uma máquina de lavar, experimentará, entre a sofreguidão e o medo, a sua suada, precipitada e deslumbrada primeira explosão de amor carnal com uma mulher vinte anos mais velha, a mãe de Billy, o seu melhor amigo de escola. A memória é, em si própria, uma eterna e movediça ficção e John Banville coloca o seu personagem, muito tempo depois, às voltas com as suas recordações perturbadoras, às quais regressa repetidamente, enquanto tenta lidar, melancólica e dolorosamente, com o tenebroso presente.
Alex um actor reformado, recebe um inopinado convite para participar num filme como actor principal, encarnando a personagem de um tal Axel Vander, figura nebulosa e de carácter duvidoso. Para se preparar para o papel vê-se obrigado a ler a biografia do dito Axel, intitulada “A Invenção do Passado”, da autoria de um tal J.B. (John Banville?), uma prosa que ele considera maçadora, pomposa e absurdamente pretensiosa. (Uma nota irónica do autor em relação aos seus críticos)
Não será inoportuno referir que “Luz Antiga” faz parte de uma trilogia que inclui Eclipse”(2000) e “Shroud” (2002). “Eclipse” foi considerado como um poema em prosa, um espaço em que o mesmo Alexandre Cleave, votado à solidão, enfrenta os fantasmas “ do passado e do futuro”; em “Shroud”, Axel (anagrama de Alex) Vander, famoso homem de letras – ao que parece inspirado na figura do crítico literário e filósofo desconstrucionista belga Paul de Man, que alcançou enorme notoriedade antes de se ter descoberto a sua anterior e muito activa colaboração com os nazis – encontra-se em Itália com Cass Cleave com quem tem uma relação tempestuosa, levando-a supostamente ao suicídio – grávida, atira-se ao mar de uma torre perto do lugar onde morreu Shelley. Vander que, por sua vez, é um impostor e um ladrão de identidades, poderá ter assassinado Cass, um mistério que faz eco do escândalo que rodeou a morte de Hélène Legotien, às mãos de Louis Althuser.
Banville é um feroz apreciador da figura do “duplo”, do “doppelgänger” da imaginação popular e um perito no jogo de sombras e de ilusão, nas imagens e nas palavras, levando por vezes longe demais o malabarismo que utiliza para conseguir o efeito “matrioska”, isto é, a recordação dentro da recordação da recordação, num infindável e perenemente distorcido fio de Ariadne que se enreda cada vez mais, toldando a visão e impossibilitando uma saída.
E se é verdade que é um prazer ler uma prosa densamente evocativa e poeticamente arrebatadora, (a marca deste escritor), a repetição de imagens e de temas provoca uma certa perplexidade. Existe um óbvio desequilíbrio, certamente propositado, entre o relato da relação idílica de Alex com a senhora Gray – a excitação, a beleza, a plenitude, a casa em ruínas onde fazem amor num velho colchão malcheiroso, no meio de um bosque de aveleiras, com um rio e um pequeno prado, ou no automóvel onde os odores impregnam os velhos assentos de couro, são o reflexo de um Éden perdido no passado - e a descrição onírica do mal-estar no presente, com a dolorosa memória de Cass, a difícil e distraída relação com a mulher, Lydia, e a desastrosa viagem de volta a Itália no rasto da filha . Entre o Céu e o Inferno, este Alex de “Luz Antiga” – um termo usado na lei que dá a um proprietário, há pelo menos vinte anos, o direito de manter a luz da sua casa, isto é, sem construções posteriores que lhe afectem essa prerrogativa – é como que uma recreação de Max Morden, o confuso e deprimido narrador de meia idade dessa obra-prima que é “O Mar” com os temas recorrentes de Banville: o suicídio, as dores de repetidas perdas, o luto irreparável, as memórias da paixão erótica juvenil, a impiedosa passagem do tempo e a glorificação, estranhamente irónica mas claramente arrebatada, do “eterno feminino goetheano”, esse espaço misterioso e secreto onde os homens – e os rapazes - se perdem sem nunca chegarem a entender a sua verdadeira dimensão.
Banville, que se diz discípulo de Henry James, está, na realidade, bem mais próximo de Nabokov, tendo em vista o seu apurado e cáustico sentido de observação e a propensão para os detalhes e para a distorção causada pelos infinitos cambiantes do espectro cromático. (Uma herança da sua primeira actividade como pintor).Defensor confesso do ritmo, da entoação e da subtileza da linguagem em detrimento da preocupação com a trama ou com a caracterização de personagens, o seu estilo é decididamente “barroco” na forma como constrói os seus livros como peças de arquitectura, recheadas de pormenores surpreendentes e rebuscados.
Neste romance, o autor parece ainda querer provar, mais uma vez, que nunca se sai impune dos momentos de felicidade absoluta sem a posterior “factura” que pode ser bem dura. Em entrevistas, Banville tem referido a forte influência da sua educação católica que “… bem cedo instila na cabeça das crianças, o complexo de culpa”. Para Alex Vander, terminada e arrumada a sua inocência e na incapacidade assustadora de parar o tempo, o mundo transforma-se num lugar bem mais hostil, onde filhas amadas desaparecem para todo o sempre e onde não há espaço para o amor, apenas para a cumplicidade. Nem mesmo a tentativa falhada de “substituir” Cass por Dawn Davenport , a frágil, friorenta, desamparada ( e também suicida) actriz com quem contracena, lhe pode trazer consolo. Só lhe resta revisitar as memórias e quedar-se naquele lugar para onde volta sempre, enrodilhado no chão como um cão fiel, junto à cama da mãe, os dedos desta tocando-lhe os cabelos, num eterno gesto de protecção.
Luz Antiga, John Banville, Porto Editora, tradução de José Vieira de Lima, Lisboa, 2013.