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“Though nothing can bring back the hour
Of splendour in the grass, of glory in the flower;
We will grieve not, rather find
Strength in what remains behind;”
…
William Wordsworth,“Ode: Intimations of Immortality from Recollections of Early Childhood”
Comecei a escrever um “diário” aos 9 anos e continuei a fazê-lo, com maior ou menor persistência e com regularidade variável, até aos dias de hoje. São cadernos de todos os feitios e tamanhos, (que irão certamente para o lixo, um dia destes), amontoados em dois gavetões, nas estantes que estiveram no escritório da quinta do meu avô paterno. Só quem não se meteu numa empreitada semelhante poderá escapar ao embaraço ( e espanto) semelhante ao que sinto ao ler os desabafos do meu “eu” longínquo, ao longo das diferentes fases da minha vida. Há tragédias infantis, crises místicas e ardores revolucionários, amores, pieguices, episódios hilariantes, apontamentos de viagens, revoltas, rompimentos sentimentais e, também, recortes de jornais com notícias que me interessavam ( aqui, na fotografia, uma notícia sobre a guerra do Vietname), bilhetes de concertos, convites, etc. Tudo perfeitamente banal. Os anos menos profícuos em termos de escrita foram os 12, 13, 14, 15, altura em que me limitava a apontar as idas ao cinema, à praia e às festas, bem como os nomes dos namorados, como beijavam e quantos beijos davam, coisas deste teor que chocaram a minha neta mais velha, sempre interessada na minha vida passada em Lourenço Marques (Maputo - Moçambique), onde cresci, rodeada de conforto, com pais severos mas compreensivos, inúmeras amizades e uma enorme e gloriosa liberdade .
Muitas vezes não reconheço aquela pessoa que escreve, embora sejam outras tantas as vezes em que me revejo nitidamente, numa espécie de clarão ofuscante. Senti o mesmo ao passar os olhos, recentemente, pelas cartas que enviava regularmente à minha Mãe, quando vim para Lisboa, para a faculdade. É como se aquela miúda que descrevia tudo com pormenores infindáveis – sem qualquer propósito específico, uma vez que nunca aspirei a ser um Boswell, ( nem tinha um Dr. Johnson por companhia) ou um sucedâneo da Duquesa de Northumberland e muito menos um Samuel Pepys ou um Casanova, embora tenha decidido imitar Virginia Woolf , logo que deitei mão aos seus Diários – fosse uma espécie de antepassada minha que, insidiosamente, preparou o terreno, semeou e planeou, formando a pessoa que hoje sou. (“The child fathers the man” e, no meu caso, “the woman”)
Wordsworth, na sua belíssima e célebre Ode, citada no início desta crónica, descreve exactamente o processo do crescimento nas diferentes formas de ver e de apreender o universo. Alternando desespero e esperança, no eterno ciclo da existência, Wordsworth faz, também, uma alusão interessante ao facto de chegarmos a este mundo, não como totalmente destituídos de conhecimento ou de memória, mas sim “equipados” com uma espécie de luz, vestígio de uma existência que é, depois, apagado da nossa memória, dando lugar a sucessivas vidas com as suas próprias memórias das quais só retemos uma ínfima parte.
Esta Ode tem muito que se lhe diga – principalmente sobre a “imortalidade” do Poeta” – mas fico-me com o sentimento de profunda nostalgia da infância que aqui está cantado. Não sofro desse mal mas continuo a maravilhar-me com a sucessão de vidas e de experiências, e a espantar-me com tanto de mim mesma que esqueço a cada instante, sem remédio. Claro que posso ler os ditos "diários". Mas será que me apetece? E serão eles, fiáveis? Não, claro que não. Por isso, voltam ao seu lugar e aí ficarão fechados. Até um dia.